STJ ajuda o Brasil a consolidar confiança na arbitragem
Com cerca de 90 milhões de processos tramitando no Brasil, não é incomum
que casos até simples fiquem anos aguardando julgamento. A situação pode se
tornar ainda muito mais grave se o processo envolver questão de alta
complexidade técnica. Uma solução que tem sido cada vez mais aplicada,
especialmente por empresas, é o instituto da arbitragem.
Numa corte arbitral, as partes aceitam se submeter à decisão do árbitro, que
não é necessariamente advogado ou juiz, podendo ser um especialista da área
onde há a controvérsia. A presidenta do Comitê Brasileiro de Arbitragem (CBAr)
e doutora em direito pela Universidade de São Paulo (USP), Adriana Braghetta,
explica que esse sistema é um método complementar de solução de controvérsias
legais, disponível para empresas e cidadãos.
O instituto existe praticamente desde o Império Romano e sempre foi amplamente
utilizado na Europa. No Brasil, é regulamentado pela Lei 9.307/96, antes da
qual o uso da arbitragem era mínimo. As partes não eram compelidas a cumprir a
decisão arbitral, e esse descumprimento se convertia em ação de perdas e danos.
O ministro Sidnei Beneti, presidente da Segunda Seção do Superior Tribunal de
Justiça (STJ), considera simbólico o fato de que esse instituto, que
descentraliza o Poder Judiciário, começou a ganhar força com a redemocratização
brasileira.
O Brasil é signatário da Convenção de Nova Iorque, de 1958, que trata do
reconhecimento e execução das sentenças arbitrais estrangeiras. O país
ratificou a convenção em 2002 e tem se destacado pela eficiência e
transparência desse sistema. Uma comissão está sendo criada pelo Senado Federal
para aprimorar a Lei 9.307 e deverá ser presidida pelo ministro do STJ Luis
Felipe Salomão.
Papel do STJ
Nesse cenário, o STJ tem dado importante contribuição para fortalecer a
arbitragem, criando jurisprudência sobre o tema. Em decisão recente da Terceira
Turma, ficou estabelecido que o Judiciário não pode intervir, nem mesmo
julgando ações cautelares, se uma corte arbitral já está formada. O
entendimento foi dado no Recurso Especial (REsp) 1.297.974, relatado pela
ministra Nancy Andrighi.
Duas empresas iniciaram um projeto ligado a energias renováveis.
Posteriormente, uma delas ajuizou medida cautelar alegando inadimplência
contratual da outra. O pedido foi negado, mas antes do julgamento da apelação
foi instaurado o tribunal arbitral. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro
(TJRJ), entretanto, decidiu que a arbitragem não impediria a análise das
questões urgentes.
Houve recurso ao STJ e a ministra Andrighi entendeu que a competência do TJRJ
era precária, não se estendendo após a instalação da corte arbitral. Caberia ao
juiz, prosseguiu a relatora, enviar o processo ao árbitro, para ele decidir
sobre a cautelar. Para a ministra, isso evitaria o prolongamento desnecessário
do processo.
A mesma magistrada também relatou outro recurso fixando as possibilidades de
uso da arbitragem envolvendo empresas falimentares. Na Medida Cautelar (MC) 14.295,
a ministra decidiu monocraticamente que o instituto pode ser aplicado mesmo se
uma das empresas envolvidas se encontrar em liquidação. A massa falida de uma
operadora de planos de saúde entrou com a medida para suspender o procedimento,
pois, com o patrimônio indisponível, ela estaria impedida de concluir negócios
pendentes.
Para a ministra, não haveria risco na participação na arbitragem, pois a defesa
dos direitos da massa falida seria levada em conta, juntamente com os dos
credores e demais interessados. Além disso, ponderou, a empresa optou pela
arbitragem no contrato, e eventuais acordos deveriam passar pelo crivo das
autoridades competentes.
Efeito retroativo
Um dos entendimentos fixados pelo STJ é no sentido de que a Lei 9.307 se aplica
aos contratos firmados antes de sua vigência e que contenham cláusula admitindo
a arbitragem. Uma das decisões mais antigas nesse sentido foi dada na Sentença
Estrangeira Contestada (SEC) 349, relatada pela ministra Eliana Calmon. O então
ministro do STJ Luiz Fux, hoje no Supremo Tribunal Federal (STF), afirmou que a
lei, por ser eminentemente processual, aplica-se de forma imediata a fatos
pendentes.
A Primeira Turma, no julgamento do REsp 933.371, chegou a essa mesma conclusão
em processo envolvendo a Itaipu Binacional e a prestadora de serviços Logos
Engenharia S/A. A Logos ajuizou ação de cobrança contra a Itaipu, para o
pagamento de multa e correções por pagamentos atrasados. A Itaipu afirmou que o
processo deveria ser extinto e submetido à arbitragem, pois havia cláusula
compromissória.
Ocorre que a jurisprudência do STJ já estabelecia que contratos prevendo a
arbitragem estão sujeitos à Lei 9.307, sendo possível sua aplicação retroativa.
E, concluiu a Turma, a Súmula 5 do próprio Tribunal veda a análise de cláusulas
de contrato.
Tal fundamentação também foi adotada pelo ministro Luis Felipe Salomão no REsp
934.771, no qual um laboratório queria encerrar contrato firmado em 1964 com um
hospital de São Paulo. Para o ministro Salomão, a Lei de Arbitragem tem
aplicação imediata nos contratos que preveem esse instituto, especialmente se
aceito de forma expressa.
Essa jurisprudência é tão pacífica que já foi até transformada em súmula no
STJ. O enunciado, de número 485, tem como texto: “A Lei de Arbitragem aplica-se
aos contratos que contenham cláusula arbitral, ainda que celebrados antes da
sua edição.”
Segredos do sucesso
Especialista na Lei de Arbitragem, o advogado e ex-conselheiro do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ) Marcelo Nobre aponta que o grande diferencial do
Brasil foi equiparar o árbitro ao juiz togado. “A sentença arbitral é
equiparada a um título executivo judicial. Além disso, o árbitro pode ser muito
mais próximo da parte técnica e ter um entendimento mais profundo sobre o
tema”, observou.
Para o advogado, a arbitragem retira do Judiciário matérias muito complexas e
específicas, cuja análise tomaria tempo excessivo dos magistrados, mas no
sistema arbitral podem ser resolvidas em menos de um ano. Outro ponto positivo
é o tratamento dado a questões que envolvem empresas estrangeiras e
ordenamentos jurídicos de outros países, que poderiam gerar “intermináveis
polêmicas”.
No caso da SEC 3.709, relatada pelo ministro Teori Zavascki, foram abordadas
regras de constituição de advogados. A Corte Especial do STJ entendeu, de forma
unânime, que em casos de arbitragem internacional as regras para constituição
de advogado seguem as leis às quais as partes se submeterem. Se não houver
regra específica, adota-se a legislação do país onde se deu a arbitragem.
No caso, a filial brasileira de uma empresa de telecomunicações contestou a
sentença que a condenou a pagar R$ 12 milhões para uma empresa estadunidense,
por descumprimento de contrato. Entretanto, o contrato foi firmado pela filial
chilena, sem participação das outras unidades. A empresa credora iniciou um
processo e pediu a participação das filiais do Brasil e de outros países
latino-americanos, pois os objetivos do contrato também as afetavam. Alegando
que ela não teria firmado contrato direto com a empresa credora, nem concordado
em ser representada pelo advogado da unidade chilena, a filial brasileira
contestou a ação.
O ministro Zavascki, porém, observou que a constituição de advogado por simples
comunicação à corte arbitral é procedimento aceito nos Estados Unidos, não
sendo admissível à filial brasileira tentar adotar regras locais em arbitragem
internacional. Além disso, ela participou de todas as fases do procedimento,
inclusive do julgamento pelo árbitro.
Outra decisão importante envolvendo entidades estrangeiras foi dada no REsp
1.231.554, na qual a Terceira Turma do STJ entendeu, de forma unânime, não ser
necessária homologação de sentença de tribunal arbitral estrangeiro proferida
no Brasil. Para a ministra Nancy Andrighi, relatora da matéria, essa sentença
pode ser considerada brasileira, pois a legislação nacional adotou o princípio
territorialista para definir a nacionalidade da arbitragem.
Para ela, ao adotar esse princípio, a Lei 9.307 desconsiderou qualquer outro
elemento. O fato de o procedimento ter sido apresentado à Corte Internacional
de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional, com sede em Paris, não
altera a nacionalidade da sentença.
Melhor aluno
A disposição brasileira em adotar o instituto da arbitragem tem merecido
elogios de peritos internacionais, como o doutor em direito e professor
holandês Albert Jan van den Berg. Em recente evento no STJ, ele afirmou que a
Justiça do país vem se tornando exemplo para o mundo. O Brasil, na visão do
especialista, tornou-se de dez anos para cá o “melhor aluno da classe” sobre o
tema. O fato de o STJ centralizar e uniformizar as decisões sobre arbitragem
seria um ponto-chave para o sucesso.
Marcelo Nobre concorda. Segundo o advogado, o julgamento das dúvidas sobre arbitragem
diretamente pelo STJ poupa grande tempo, exatamente o objetivo do instituto.
Ele acrescenta que o Brasil soube aproveitar-se das experiências, acertos e
erros de países com mais tradição no uso desse instituto, como a França,
Inglaterra e Estados Unidos.
Já Adriana Braghetta aponta que os magistrados brasileiros aceitaram
rapidamente a arbitragem, sem encará-la como uma “invasão” à autoridade do
Judiciário. “Hoje, podemos dizer, sem sombra de dúvidas, que existe uma
excelente cooperação, um excelente apoio, sobretudo do STJ, que tem proferido
decisões muito técnicas e que são acompanhadas por toda a comunidade
empresarial mundial”, disse.
Ela também informou que um estudo recente feito pelo CBAr, em parceria com a
Fundação Getúlio Vargas (FGV), indica que os juízes têm se posicionado
favoravelmente à arbitragem, especialmente em temas como a existência da
convenção arbitral, medidas de urgência e coercitivas, execução da decisão
arbitral e outros. A magistratura, na visão de Adriana Braghetta, estaria
aplicando de maneira ampla essa legislação.
O ministro Sidnei Beneti concorda com essa afirmação e acrescenta que as
resistências têm ocorrido muito mais em segmentos extrajudiciários. Para o
magistrado, os juízes nunca foram contra a arbitragem; a legislação anterior,
feita para um “estado forte”, é que obrigava que eles não decidissem nessa
direção. “Os juízes, esses são garantes da arbitragem. Se não o fossem,
bastaria a construção de jurisprudência contrária para aniquilá-la”, ponderou.
Marcelo Nobre conclui que ainda há muito espaço para a arbitragem ser
aprimorada e atualizada com questões do mercado. Ele cita, por exemplo, a
necessidade de melhoria na redação das regras que possam gerar interpretações
dúbias. Outro ponto seria a regulamentação da mediação, um procedimento também
previsto na Lei 9.307, particularmente útil para pessoas físicas.
Adriana Braghetta espera que possíveis mudanças não alterem a trajetória de
sucesso da Lei de Arbitragem. Ela lembra que, com a proximidade da Copa do
Mundo, em 2014, e das Olimpíadas, em 2016, no Brasil, muito mais contratos
terão o mecanismo da arbitragem, e a insegurança jurídica para empresas e
investidores estrangeiros deve ser evitada.
Fonte:
STJ – Superior Tribunal de Justiça
O Tribunal da Cidadania
30/09/2012 - 08h00
ESPECIAL