sábado, 22 de dezembro de 2012

Meu desejo para você...


Perfeito!
Que o Espírito natalino renove
nossas esperanças  e
 que continuemos a construir dias melhores...
Carinhoso abraço.
Um Feliz Natal a todos(as)!


sexta-feira, 30 de novembro de 2012

O ACORDO COMO LEI


Aline Lenz 1
Simone Avila de Matos 2

            Como alternativas para efetivação da justiça, vem emergindo novas formas de resolução de conflitos: a mediação, a conciliação e arbitragem.
            Atualmente, o direito ao acesso ao Poder Judiciário democratizou-se, qualquer cidadão, ao sentir-se injuriado ou caluniado, pode entrar na Justiça com um processo judicial para exigir reparos. Contudo, segundo levantamento feito pelo CNJ – Conselho Nacional de Justiça (disponível em: http://stj.jusbrasil.com.br/noticias/100152819/em-2011-tramitaram-no-brasil-90-milhoes-de-processos-judiciais/relacionadas) quase 90 milhões de processos tramitaram na Justiça brasileira em 2011 — 71% processos que já estavam pendentes. O total de casos novos cresceu 8,8%. Ao longo de 2011 foram baixados aproximadamente 26 milhões de processos, quase o mesmo quantitativo ingressado. Foram proferidas 23,7 milhões de sentenças e decisões. Independentemente do ramo da Justiça, os processos de execução são a maior causa da morosidade, com taxa de congestionamento de 80% na Justiça Federal e de 90% na Justiça Estadual. Já a despesa total da Justiça alcançou a cifra de R$ 50,4 bilhões, sendo que aproximadamente 90% referem-se a gastos com recursos humanos. O mesmo estudo concluiu ser a Justiça do Trabalho a que oferece respostas mais rápidas aos conflitos. Ainda assim, há processos sem solução com muito tempo de espera.
Analisando estes dados é notória a necessidade de uma alternativa para efetivação da justiça. Com este propósito é que, instituídos pela Lei Federal nº 9307 de 1996, surgiram os Tribunais de Mediação. No Rio Grande do Sul, a instituição foi fundada em 23 de setembro de 2000, denominada TMA/RS - Tribunal de Mediação e Arbitragem do Estado do Rio Grande do Sul. Hoje, as atividades são exercidas em 48 seccionais gaúchas por juízes mediadores de diversas formações que passam por cursos de qualificação. Com uma metodologia diferenciada, o TMA/RS utiliza-se de técnicas da mediação, da conciliação e, em último caso da arbitragem, até a nomenclatura de chamamento das partes é diferente, para poder diferenciar do Judiciário e facilitar o acordo, ao invés das partes serem denominadas de “Réu e Autor”, são chamados de Requerido e Requerente, e também não é somente esta diferença, a Câmara de Juízes Mediadores, é composta de três juízes, ao invés do juízo monocrático do nosso Judiciário brasileiro. Numa corte arbitral, as partes aceitam se submeter à decisão dos árbitros, que não são necessariamente advogados, podendo ser um especialista da área onde há a controvérsia. Porém, a atuação do advogado é vista como relevante e incentivada pelo TMA/RS, uma vez que permite maior segurança jurídica ao firmar o acordo, mas não é obrigatória, ficando a critério das partes a opção pelo seu assessoramento jurídico ou não.
Esta nova metodologia de trabalho que esta sendo desenvolvida na sociedade brasileira e presente na cidade de São Luiz Gonzaga, através da Seccional do TMA/RS local, com sede na Rua Bento Soeiro de Souza, 2838, apesar de pioneira na micro-região, faz parte de uma história de 12 anos, que foi recentemente reconhecida pela Assembléia Gaúcha, recebendo a Medalhada 53ª Legislatura, como “o reconhecimento do Parlamento gaúcho ao trabalho desenvolvido pelo TMA na resolução ágil dos conflitos, no fortalecimento das comunidades, na restauração das relações entre os cidadãos e na defesa da dignidade do ser humano”, segundo o deputado estadual Carlos Gomes, que propôs a homenagem. A Assembléia Legislativa também irá somar esforços para divulgar os serviços prestados pelo TMA/RS, produzindo uma cartilha explicando a atuação deste Tribunal e o endereço de cada uma de suas Seccionais.
Portanto o TMA/RS, vem cumprindo seu ideal, exercendo Juízo de Mediação e Arbitragem frente a conflitos de direitos patrimoniais disponíveis. Onde, as ações envolvem empresas e pessoas físicas em processos para resolução de casos de inadimplência, conflitos e litígios sobre cheques, promissórias, locações e condomínios, contratos em geral, serviços prestados, danos materiais em acidentes de automóveis, entre outras causas. Com um espaço para o diálogo consciente, onde cidadãos, líderes comunitários, movidos por um ideal na promoção de justiça cidadã, comunitária, humanizadora e pacificadora de conflitos trabalham com muito afinco, como facilitadores da comunicação, oportunizando a autonomia das partes para a solução do conflito, tendo como foco principal o acordo. Porque, o acordo faz lei entre as partes!

1 Juíza Mediadora, Contadora e pós-graduada em Auditoria e Perícia Contábil
2 Juíza Mediadora, Professora, Bacharela em Direito e pós-graduada em Direito Civil e Direito Processual Civil

terça-feira, 27 de novembro de 2012

SECCIONAL DO TMA/RS REALIZOU ELEIÇÃO

Cumprindo calendário geral da Instituição, a Seccional de São Luiz Gonzaga do TMA/RS – Tribunal de Mediação e Arbitragem do Rio Grande do Sul, realizou, no último sábado, 24 de novembro, em sua Sede, eleição da Diretoria Administrativa e do Conselho Fiscal - que irão atuar de novembro de 2012 a novembro de 2013.

A Diretoria Administrativa ficou composta pelos seguintes Juízes Mediadores:
Presidente – Alysson Reginato dos Santos;
Vice-presidente  Administrativo – Eduardo Felippe Vontobel;
Vice-presidenta do Financeiro e de Patrimônio – Aline Lenz;
Vice-presidenta Institucional e de Formação – Simone Avila de Matos;
Vice-presidenta de Comunicação – Janaina Santos de Oliveira;
Vice-presidente Vogal – Márcio Luís Braun.



O Conselho Fiscal, ficou formado pelos seguintes Juízes Mediadores:
Primeira Conselheira – Marilda Bernadete de Oliveira; Segunda Conselheira – Maria Helena Steigleder; Terceiro Conselheiro – Noé Gonçalves de Souza; Primeiro Conselheiro Suplente – Nelson Tavares; Segunda Conselheira Suplente – Maria de Fátima Hider; Terceira Conselheira Suplente – Dirce Welter Lauter.

Titulares do Conselho Fiscal

            O TMA/RS exerce Juízo de Mediação e Arbitragem frente a conflitos de direitos patrimoniais disponíveis, ações que envolvem empresas e pessoas físicas em processos para resolução de casos de inadimplência, conflitos e litígios sobre cheques, promissórias, locações e condomínios, contratos em geral, serviços prestados, danos materiais em acidentes de automóveis, entre outras causas.
            Atendendo, na Rua Bento Soeiro de Souza, 2838, de segunda as sextas-feiras das 8h às 12h e das 14h às 18 h e aos sábados das 9h às 12h.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

SEMANA DA MEDIAÇÃO E CONCILIAÇÃO ...


TMA/RS PRESENTE NA ABERTURA DA SEMANA DA MEDIAÇÃO E CONCILIAÇÃO PROMOVIDA PELO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RS
Roque Bakof

                Atendendo convite da presidência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJ-RS), representamos o Tribunal de Mediação e Arb .do Estado do Rio Grande do Sul - TMA/RS na solenidade de abertura da 7ª Semana Nacional da Conciliação e Mediação que teve início hoje, 07/11.


Na solenidade, ao fazer a saudação de abertura, a desembargadora Vanderlei Terezinha Kubiak, coordenadora do Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos do TJ/RS, destacou que nas soluções construídas nas vias da conciliação e mediação, não há vencidos e nem vencedores, todos saem ganhando.

Nós, do TMA/RS, nos sentimos muito honrados pelo convite, e em especial por perceber na mais alta Corte da Justiça Gaúcha o reconhecimento quanto a filosofia que há mais de uma década defendemos com entusiasmo e convicção.

Leia a matéria sobre o evento, acessando o site do TJ RS
http://www.tjrs.jus.br/site/imprensa/noticias/?idNoticia=197475

Pela Mão de Alice


Fichamento organizado por: Roberta Ochulacki.
Disponibilizado para: Grupo de Pesquisa "Mediação e Justiça Restaurativa: paradigmas emergentes de resolução de conflitos no século XXI"‏
Vinculado ao Curso: Mestrado em Direito – URI Santo Ângelo.


Bibliografia:
SANTOS, Boaventura de Souza. Pela Mão de Alice, O social e o político na pós-modernidade. 8ª. São Paulo: Cortez, 2001.

Capítulo 1

Cinco desafios à imaginação sociológica. (p. 17).

“Os desafios, quaisquer que eles sejam, nascem de perplexidades produtivas. Tal como Descartes exercitou a dúvida sem a sofrer, julgo ser hoje necessário exercitar a perplexidade sem a sofrer. Se quisermos, como devemos, ser sociólogos da nossa circunstância, deveremos começar pelo contexto sócio-temporal de que emergem as nossas perplexidades. ” (p. 17).

Oitenta/Noventa

O autor propõe neste primeiro capítulo, uma abordagem sócio-temporal como exercício de análise das perplexidades emergentes deste tema.

“Está na tradição da sociologia preocupar-se com a “questão social”, com as desigualdades sociais, com a ordem/desordem autoritária e a opressão social que parecem ir de par com o desenvolvimento capitalista. À Luz desta tradição, a década de oitenta é sem dúvida uma década para esquecer” (p. 17).

“No seu decurso, aprofundou-se, nos países centrais, a crise do Estado-Providência que já vinha da década anterior e com ela agravaram-se as desigualdades sociais e os processos de exclusão social [...]” (p. 17).

“Nos países periféricos o agravamento das condições sociais, já de si tão precárias, foi brutal” (p. 17).

“Se as assimetrias sociais aumentaram no interior de cada país, elas aumentaram ainda mais entre o conjunto dos países do Norte e o conjunto dos países do Sul” (p. 17 a 18).

Diante deste quadro econômico, alguns festejaram como sendo a dor necessária de uma ordem econômica neoliberal e outros a denunciaram como uma desordem a necessitar ser substituída por outra nova ordem econômica internacional.

“A arrogância dos primeiros e a impotência dos segundos põe a sociologia decididamente de candeias às avessas com a década de oitenta” (p. 18).

“O outro pilar da tradição intelectual da sociologia é a preocupação com a participação social e política dos cidadãos e dos grupos sociais, com o desenvolvimento comunitário e a acção colectiva, com os movimentos sociais” (p. 18).

Sob este outro viés, o Autor conclui que a década de oitenta se reabilitou de maneira brilhante.

“Foi a década dos movimentos sociais e da democracia, do fim, do comunismo autoritário e do apartheid, do fim do conflito Leste-Oeste [...]” (p.18).

O Autor conclui com diversos questionamentos sobre como nos deparamos com as constantes transformações ocorridas durante as décadas de oitenta e noventa e sintetiza.

“[...] as transformações não são mais que todos nós, todos os cientistas sociais e todos os não-cientistas sociais deste mundo a transformarmo-nos” (p.18).

Entre a auto-teoria e a auto-realidade

É próprio da sociologia, ter um ângulo de observação e de análise, então indaga o autor, qual é este ângulo e como mantê-lo nas condições presentes e futuras próximas?

“A rapidez, a profundidade e a imprevisibilidade de algumas transformações recentes conferem ao tempo presente uma característica nova: a realidade parece ter tomado definitivamente a dianteira sobre a teoria” (p. 18).

O Autor observa que com isto, a realidade torna-se hiper-real e parece também, teorizar-se a si mesma.

“A rapidez e a intensidade com que tudo tem acontecido se, por um lado, torna a realidade hiper-real, por outro lado, trivializa-a, banaliza-a, uma realidade sem capacidade para nos surpreender ou empolgar” (p. 19).

Observa ainda que uma realidade que assim se apresenta torna-se fácil de teorizar, a banalidade nos faz crer que a teoria é a própria realidade com outro nome.

“Vivemos assim uma condição complexa: um excesso de realidade que se parece com um défice de realidade; uma auto-teorização da realidade que mal se distingue da auto-realização da teoria (p. 19).

Defende que é muito difícil reivindicar um ângulo de análise e pior ainda, mantê-lo numa condição assim deste tipo, embora não dê a análise sociológica por vencida.

“Não está na tradição da sociologia desistir dessa reivindicação e, valha a verdade, alguns fatores ocorrem a favor do seu sucesso” (p. 19).

 “A tradição da sociologia é neste domínio ambígua. [...] Os desafios que nos são colocados, exigem de nós que saiamos deste pêndulo. Nem guiar nem servir. Em vez de distância crítica, a proximidade crítica. Em vez de compromisso orgânico, o envolvimento livre. Em vez de serenidade autocomplacente, a capacidade de espanto e de revolta (p. 19).

Como afirmou de início, os desafios se manifestam inicialmente como perplexidades produtivas e ousa ainda,  apontar  aquelas cinco de que vamos nos ocupar nos próximos anos.

Das perplexidades aos desafios

A primeira delas nos revela que os problemas mais absorventes são de natureza econômica como desemprego, taxas de juros, dívidas externas, política econômica em geral, contudo, em aparente contradição com isto, a teoria e a análise  sociológica dos últimos anos, vem desvalorizando o econômico em detrimento do político, do cultural e do simbólico, bem como desvalorizando os modos de produção em detrimento dos modos de vida.

“Será esta contradição não apenas aparente mas também real? E se assim for, estaremos a falhar o alvo analítico e a cavar a nossa própria marginalidade? Ou será, pelo contrário, que estes diferentes factores e conceitos e as distinções em que assentam (economia, política, cultura), todas legadas pelo século XIX, estão Hoje superados e exigem uma reconstrução teórica radical? E neste caso, como fazê-la?” (p. 20).

A segunda perplexidade, o Autor formula em cima das práticas transnacionais, práticas que acarretam como principal consequência a marginalização do Estado nacional, a perda de sua capacidade de regulação social e de sua autonomia.

“Contudo, no nosso quotidiano, raramente somos confrontados com o sistema mundial e, ao contrário, somos obsessivamente confrontados com o Estado, que ocupa as páginas dos nossos jornais e os noticiários das nossas rádios e televisão, que tanto regulamenta a nossa vida para regulamentar como para desregulamentar. Será então o Estado nacional uma unidade de análise em vias de extinção, ou pelo contrário, é hoje mais central do que nunca, ainda que sob a forma ardilosa da sua descentração?” (p. 20).

A terceira perplexidade ou desafio consiste no regresso do indivíduo, na revalorização das práticas e processos e, por conseguinte, dos indivíduos que os protagonizam.

“Contudo, em aparente contradição com isto, o indivíduo parece hoje menos individual do que nunca, a sua vida íntima nunca foi tão pública, a sua vida sexual nunca foi tão codificada, a sua liberdade de expressão nunca foi tão inaudível e tão sujeita a critérios de correção política, a sua liberdade de escolha nunca foi tão derivada das escolhas feitas por outros antes dele. [...] Como fazer vingar a preocupação tradicional da sociologia com a participação e a criatividade sociais numa situação em que toda a espontaneidade do minuto um se transforma, no minuto dois, em artefacto mediático ou mercantil de si mesma?” (p. 21).

A quarta perplexidade diz respeito às clivagens sócio-políticas, que muito importantes, acabaram por se inscrever na tradição das ciências sociais, no entanto, o final do século apresenta uma surpreendente atenuação dessas clivagens e sua substituição por um consenso a respeito de um dos maiores paradigmas da modernidade: a democracia.

“A década anterior, não só viveu muitos processos de democratização, como instituições insuspeitas a esse respeito abraçaram publicamente o credo democrático” (p. 21).

“Por um lado, se a democracia é hoje menos questionada do que nunca, todos os seus conceitos satélites têm vindo a ser questionados e declarados em crise: a patologia da participação, sob forma do conformismo, do abstencionismo e da apatia política; a patologia da representação, sob a forma da distância entre eleitores e leitos, do ensinamento dos parlamentares, da marginalização e governamentalização dos parlamentos, etc. Por outro lado, se atentarmos na história européia desde meados do século XIX, verificamos que a democracia e o liberalismo econômico foram sempre má companhia um para o outro. Quando o liberalismo econômico prosperou a democracia sofreu e vice-versa. Contudo, supreendentemente, hoje a promoção da democracia a nível internacional é feita conjuntamente com o neoliberalismo e de facto em dependência dele” (p. 21).

A quinta e última perplexidade, surge com a intensificação da interdependência transnacional e das interações globais, faz com que as relações sociais pareçam cada vez mais desterritorializadas, transpondo as fronteiras estabelecidas pelos costumes, nacionalismos, línguas e ideologias.

“Contudo, e aparentemente em contradição com esta tendência, assiste-se a um desabrochar de novas identidades sociais e locais alicerçadas numa revalorização do direito às raízes (em contraposição com o direito à escolha). [...] Semelhantemente, o aumento da mobilidade transacional inclui fenômenos muito diferentes e contraditórios: por um lado, a mobilidade de quem tem a iniciativa dos processos transacionais que criam a mobilidade [...] por outro, a mobilidade de quem sofre esses processos [...] Acresce que a mobilidade transacional e a aculturação global de uns grupos sociais parece correr de par com o aprisionamento e a fixação de outros grupos sociais” (p. 22).

“O exercício das nossas perplexidades é fundamental para identificar os desafios a que merece a pena responder. Afinal todas as perplexidades e desafios resumem-se num só: em condições de aceleração da história como as que hoje vivemos é possível pôr a realidade no seu lugar sem correr o risco de criar conceitos e teorias fora do lugar?” (p. 22).

Capítulo 2

Tudo o que é sólido se desfaz no ar: o Marxismo também?

“A radicalidade do capitalismo residia em que ele, longe de ser apenas um novo modo de produção, era a manifestação epocal de um novo e muito mais amplo processo civilizatório, a modernidade, e, como tal, significava uma mudança societal global, uma mudança paradigmática” (p. 23).

“A grande complexidade, se não mesmo ambiguidade, do Manifesto está em que nele se condena o capitalismo na mesma estratégia discursiva em que se celebra a modernidade” (p. 23).

“A ciência e o progresso, a liberdade e a igualdade, a racionalidade e a autonomia só podem ser plenamente cumpridas para além do capitalismo, e todo o projecto político, científico e filosófico de Marx consiste em conceber e promover esse passo” (p. 23).

“A simetria antagónica da solidez do capitalismo e do marxismo e a história das estratégias de cada um deles para dissolver o outro no ar constituem uma das narrativas centrais da modernidade no nosso século, e nela, a narrativa sociológica é uma das mais apaixonantes” (p. 24).

Uma história para todos
1890-1920

“No plano da produção teoria e solciológica, este período, iniciado, de facto, na última década do século XIX, pode ser considerado a idade de ouro do marxismo” (p. 24).

“Inicia-se então um dos debates paradigmáticos da sociologia contemporânea, entre a teoria de Marx e a teoria de Marx Weber, outro grande fundador da sociologia, um debate sobre as origens do capitalismo, sobre o papel da economia na vida social e política, sobre as classes sociais e outras formas de desigualdade social, sobre as leis de transformação social e, em suma, sobre o socialismo” (p. 25).

“A riqueza da reflexão marxista tem obviamente a ver com pujança do movimento socialista neste período e esta é também responsável por duas grandes cisões nessa reflexão, uma de caráter predominantemente político e outra de caráter predominantemente epistemológico, que se prolongaram até aos nossos dias” (p. 25).

“Importante é reter que depois desta cisão o pensamento marxista não voltou a ser o mesmo” (p. 25).

“A tensão que assim se criou no interior do pensamento marxista não mais deixou de o habitar, como o demonstram ainda hoje, de modo antagónico, correntes tão importantes como a Escola de Frankfurt, de um lado, e mais recentemente o chamado marxismo analítico, do outro” (p. 26).

Os anos trinta e quarenta

“Desta vez, foram o capitalismo imperialista e o fascismo que pareceram ter a força suficiente para desfazer o marxismo no ar” (p. 26).

Dos anos cinquenta aos anos setenta

“Profundamente transformada, a solidez radical do marxismo afirma-se de novo capaz de desfazer o capitalismo no ar, se não o capitalismo central, pelo menos o capitalismo periférico” (p. 26).

“A diversíssima natureza destes processos de transformação social e a sua dispersão pelos diferentes espaços do sistema mundial tinham por força de suscitar profundas revisões no pensamento marxista” (p. 27).

“Pode-se dizer que neste período foi a solidez do marxismo que de algum modo se virou contra ele próprio e o desfez no ar. Os sinais de força transmutaram-se em sinais de fraqueza” (p. 28).

“Se para quase todos os cientistas sociais era claro que Marx se equivocara nas suas previsões acerca da evolução das sociedades capitalistas, o mais importante era, no entanto, reconhecer que estas sociedades se tinham transformado a tal ponto desde meados do século XIX que, qualquer que tivesse sido o mérito analítico de Marx no estudo da sociedade do seu tempo, as suas teorias só com profundas revisões teriam alguma utilidade analítica no presente” (p. 29).

Os anos oitenta

“A década de oitenta é, sob diferentes formas, a década do pós-marxismo. Mas do que em qualquer outro período anterior, a solidez e radicalidade do capitalismo ganhou ímpeto para desfazer o marxismo no ar e desta vez para o desfazer aparentemente com grande facilidade e para sempre” (p. 29).

“À medida que se multiplicaram, as “grandes revisões” do marxismo perderam o acúmen polémico, trivializaram-se de algum modo e abriram espaço para cada um construir à sua maneira o seu marxismo ou o seu pós-marxismo” (p. 30).

“Fora dos países centrais, a dissolução do marxismo no ar foi talvez menos pronunciada e a sociologia de inspiração marxista continuou a produzir reflexões e análises valiosas” (p. 31).

“Dura já há muito o debate no interior da teoria marxista sobre a tensão ou equilíbrio entre estrutura e acção, entre, por um lado, os constrangimentos e as possibilidades sociais que preexistem à ação dos indivíduos e grupos sociais e a condicionam de modo mais ou menos decisivo; e, por outro lado, a autonomia, a criatividade e a capacidade dos mesmos indivíduos e grupos de, por via da sua acção prática, mudarem as estruturas e trasformarem a sociedade” (p. 31).

“Se o período anterior, sobretudo a década de sessenta, privilegiou uma leitura estrutural, a década de oitenta privilegiou uma leitura antiestrutural” (p. 31).

“A chamada de atenção para a importância e a especificidade da exploração do trabalho e da identidade femininas, não só no espaço da produção capitalista, como também no espaço doméstico e na esfera pública em geral, constituiu o contributo mais importante para a sociologia dos anos oitenta” (p. 32).


Um futuro para todos

“Não estamos, pois, perante uma moda teórica dos anos sessenta que, como muitas outras modas do mesmo período, não é moda estarem agora em moda. Estamos antes perante um dos pilares das ciências sociais da modernidade e tudo o que nele ocorrer não pode deixar de se repercutir no conjunto destas” (p. 32 e 33).

“Tais transformações decorrerão, como sempre aconteceu no passado, da novidade dos problemas e dos desafios com que se confrontam os cientistas sociais de uma dada época” (p. 33).

“[...] Mas por outro lado, ao tentar prever mais longe e mais radicalmente, Marx apresentou, talvez contra a sua vontade, uma das últimas grandes utopias da modernidade: é hoje claro que todo o socialismo é utópico ou não é socialismo” (p. 34).

“Por um lado, a conversão do progresso em acumulação capitalista transformou a natureza em mera condição de produção. Os limites desta transformação começam hoje a ser evidentes e os riscos e perversidades que acarreta, alarmantes, bem demonstrados nos perigos cada vez mais iminentes de catástrofe ecológica. Por outro lado, sempre que o capitalismo teve de confrontar-se com as suas endémicas crises de acumulação, fê-lo ampliando a mercadorização da vida, estendendo-a a novos bens e serviços e a novas relações sociais e fazendo-a chegar a pontos do globo até então não integrados na economia mundia. Por uma e outra via, tal processo de expansão e ampliação parece estar a atingir limites inultrapassáveis. A mercadorização e mercantilização de bens e serviços até agora livres começa hoje a envolver, com a biogenética, o próprio corpo humano, e quando isso suceder não será possível ir mais longe” (p. 34-35).

“A sociologia de Marx é, em geral, coerente com a utopia de Marx, mas não se confunde com ela” (p. 36).

Processos de determinação social

“Um dos grandes méritos de Marx é o ter-se centrado na análise de transformações macro-sociais” (p. 36).

“O determinismo possibilitou a Marx desenvolver uma série de conceitos (forças produtivas, relações de produção, modo de produção) que lhe permitiram proceder a uma análise global da sociedade capitalista e definir a direcção da sua transformação futura. Essa análise, apesar de incompleta, continua hoje a ser valiosa, e os conceitos que Marx desenvolveu para efectuar continuam a ter um grande valor heurístico” (p. 37).

“Isto não significa, contudo, que a sociedade seja totalmente contingente ou indeterminada, como querem Laclau e Mouffe” (p. 37).
“Cada vez mais, os fenômenos mais importantes são simultaneamente econômicos, políticos e culturais, sem que seja fácil ou adequado tentar destrinçar estas diferentes dimensões. Estas são produto das ciências sociais oitocentistas e revelam-se hoje muito pouco adequadas, sendo tarefa urgente dos cientistas sociais descobrir outras categorias que as substituam” (p. 38).

Acção colectiva e identidade

“Já fereri, embora isso seja controverso, que em minha opinião, a obra de Marx no seu todo procura obter um equilíbrio, embora instável, entre estrutura e acção: os homens e as mulheres não são mais produtos da história do que são seus produtores” (p. 39).

“Em primeiro lugar, a evolução das classes nas sociedades capitalistas não seguiu o trilho que Marx lhe traçou” (p. 40).

“[...] Por último, sobretudo nas últimas três décadas, os movimentos e as lutas políticas mais importantes nos países centrais e mesmo nos países periféricos e semiperiféricos foram protagonizadas por grupos sociais congregados por identidades não directamente classistas, por estudantes, por mulheres, por grupos étnicos e religiosos, por grupos pacifistas, por grupos ecológicos, etc., etc” (p. 40).

“Em face disto, não surpreende que tanto a primazia explicativa, como a primazia transformadora das classes estejam hoje a ser radicalmente questionadas” (p. 41).

“[...] A crítica mais profunda e consequente veio da sociologia feminista
“[...] Ao privilegiar a opressão de classe, o marxismo secundarizou e, no fundo, ocultou a opressão sexual e, nessa medida, o seu projecto emancipatório ficou irremediavelmente truncado” (p. 41).

“As classes são uma forma de poder e todo o poder é político [...] Uma família operária da periferia de Lisboa sofre simultaneamente o poder de classe, o poder sexual, o poder estatal e até, se forem imigrantes africanos, o poder étnico” (p. 42).

Direcção da transformação social

“Um dos maiores méritos de Marx foi o de tentar articular uma análise exigente da sociedade capitalista com a construção de uma vontade política radical de a transformar e superar numa sociedade mais livre, mas igual, mais justa e afinal mais humana [...] trata-se agora de saber se, uma vez que o sujeito histórico de Marx falhou à história, pelo menos até agora, falhou com ele a utopia de transformação que lhe era atribuída. Trata-se, além disso, e ainda mais radicalmente, de saber se esta averiguação tem hoje algum interesse” (p. 42).

“[...] A crise final de um determinado sistema social reside em que a crise de regulação social ocorre simultaneamente com a crise de emancipação” (p. 42 e 43).

“Julgo, pois, que precisamos da utopia como do pão para a boca. Marx ensinou-nos a ler o real existente segundo uma hermenêutica de suspeição e ensinou-nos a ler os sinais de futuro segundo uma hermenêutica de adesão [...] Em suma, a utopia de Marx é, em tudo, um produto da modernidade e, nessa medida, não é suficientemente radical para nos Aguiar num período de transição paradigmática. Devido a um desequilíbrio, criado pela ciência moderna entre a capacidade de acção, que é cada vez maior, e a capacidade de previsão, que é cada vez menor, o futuro é hoje para nós, ao contrário do que foi para Marx, simultaneamente mais próximo e mais imprescrutável” (p. 43).

“[...] Foi a partir da consciência da opressão que nas últimas três décadas se formaram os novos movimentos sociais” (p. 44).

“Esta reconceptualização ilustra bem como as mesmas condições que, nas nossas sociedades de fim de século, reclamam uma hermenêutica de suspeição do tipo da que Marx emprendeu, reclamam igualmente uma profunda revisão e transformação do marxismo tal como o conhecemos. A solidez do marxismo reside essencialmente em necessitarmos dessa hermenêutica de suspeição para decidir sobre o que do marxismo deve ser desfeito no ar”. (p. 45).

Capítulo 3

Na segunda parte da obra Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade - Condições de Intelegibilidade - Boaventura de Sousa Santos menciona onze teses que refere ser por ocasião de mais uma descoberta de Portugal. As abordagens usadas são ora apropriadas às sociedades desenvolvidas, ora o são às sociedades periféricas do terceiro mundo.

 “Apesar de ser um país europeu e de os portugueses serem tidos por povo afável, aberto e sociável, é Portugal considerado um país relativamente desconhecido. Apesar de ser um país com longa história de fronteiras abertas e de “internacionalismo”, é considerado um país exótico, idiossincrático. Desconhecimento e exotismo são, pois, temas recorrentes quando se trata de propor uma apreciação global do país e de seu povo.” ( p. 53)

“A violação recorrente das liberdades cívicas e a atitude hostil à razão crítica fez com que acabasse por dominar a crítica da razão geradora dos mitos e esquecimentos com que os portugueses teceram os seus desencontros com a história. O desconhecimento de Portugal é, antes de mais, um auto- desconhecimento”. (p.54)

“Na segunda metade do século XIX e nos princípios do século XX nasceram nos países desenvolvidos da Europa as ciências sociais. Fundadas criticamente no pensamento social e político iluminista do século XVIII, tinham por vocação desmitificar e desmistificar as crenças sociais até então aceites como pensamento rigoroso de uma forma de pensar sem rigor (o senso comum)”. (p.54-55)

“Terminada (definitivamente) a repressão com a revolução de 25 de abril de 1974, criaram-se algumas condições para o desenvolvimento, tão tardio quanto urgente, das ciências sociais.” (p.55)

“Como só há um sistema mundial, não é possível fazer comparações com outros sistemas que lhe sejam exteriores. Sendo assim, a unicidade dos diferentes países reside tão-só no modo diferente e específico como cada um se integra no sistema mundial.” ( p. 56)

“[...] As ciências físico-naturais aplicadas estão especificamente apetrechadas para determinar diferenças quantitativas (níveis de rendimento, taxas de mortalidade, etc.), como diferenças quantitativas (estrutura de classes, padrões de consumo e suas relações com padrões de produção, características da sociedade civil, etc.) [...]” (p. 57)

“[...] Portugal é uma sociedade de desenvolvimento intermédio. Algumas características sociais (taxa de crescimento populacional, leis e instituições, algumas práticas de consumo, etc.) aproximam-na das sociedades mais desenvolvidas, enquanto outras (infra-estruturas coletivas, políticas culturais, tipo de desenvolvimento industrial, etc.) a aproximam das sociedades menos desenvolvidas [...].” (p.57-58)

“Num “estudo” sobre o “caráter nacional português”, Jorge Dias traça assim, em 1950, a “personalidade base” dos portugueses. “O português é um misto de sonhador e de homem de ação, ou, melhor, é um sonhador ativo, a que não falta certo fundo prático e realista”. Há no português uma enorme capacidade de adaptação a todas as coisas, idéia e seres, sem que isso implique perda de caráter [...]”. (p.59)

“[...] E, finalmente, é um povo paradoxal e difícil de governar. Os seus defeitos podem ser as suas virtudes e as suas virtudes os seus defeitos, conforme a ágide do momento”. (p.60)

“[...] Em qualquer dos seus matizes é um senso comum conservador, quer porque assenta numa visão naturalista da história, quer porque reivindica para as elites a responsabilidade da sua produção [...]” (p. 60)

“Este senso comum assenta em três topoi retóricos fundamentais. O primeiro é que somos espanhóis diferentes. Somo-lhes contrapostos a partir de um fundo de cumplicidade. Para Jorge Dias, a religiosidade portuguesa não tem o caráter abstrato, místico ou trágico próprio da espanhola  tem... um cunho humano, acolhedor e tranquilo. [...]” (p.60)

“O segundo topos do senso comum elitista sobre os portugueses é que no caráter português se misturam elementos contraditórios, o que lhe confere uma ambiguidade e uma plasticidade especiais. [...] “(p. 61)

“O terceiro topos consiste na oscilação entre visões positivas e visões negativas da condição do “homem português”. Enquanto o primeiro estudo de Jorge Dias sobre o caráter nacional, datado de 1950, é otimista, o segundo estudo, datado de 1968, é profundamente pessimista.” (p.62)

“É importante, acima de tudo, transformar esse conhecimento num novo senso comum sobre os portugueses, menos mistificador, mas mais proporcionado, menos celebratório, mas mais eficaz, menos glorioso, mas mais emancipador [...]”. (p.63)

“[...] As sociedades de desenvolvimento intermédio exercem uma função de intermediação no sistema mundial, servindo simultaneamente de ponte e de tampão entre os países centrais e os países periféricos [...]”. (p.63)

“[...] o modelo de desenvolvimento seguido em Portugal nos últimos dez anos tem maior potencial periferizante do que centralizado. Assenta na desvalorização internacional do trabalho português, ao optar por privilegiar, entre os setores de exportação, aqueles que se encontra em crescente processo de desvalorização internacional, como por exemplo, o setor têxtil. Em consequência, o padrão de especialização produtiva da nossa economia baixou nos últimos dez anos, enquanto o padrão espanhol aumentou. [...]” (p.64)

“[...] Se assim for, Portugal consolidará numa nova base a sua posição semiperiférica no sistema mundial. [...]” (p.65)

“[...] Ao mesmo tempo que os nossos viajantes diplomatas e militares descreviam os curioso hábitos e modos de vida dos povos selvagens com quem tomavam contato no processo de construção do império, viajantes diplomatas e militares da Inglaterra ou da França descreviam, ora com curiosidade ora com desdém, os hábitos e modos de vida dos portugueses, para eles tão estranhos ao ponto de parecerem pouco menos que selvagens. [...]” (p.65)

“A mesma articulação entre elementos heterogêneos é detectável em múltiplos domínios. Apenas um exemplo, Portugal seguiu um modelo de desenvolvimento agrícola e de relações agricultura-indústria muito diferente daquele que foi adaptado pelos países mais desenvolvidos da Europa. Em consequência, Portugal tem a mais elevada percentagem européia de população a viver em meio rural e o operário português típico é ainda hoje um semiproletário, pluriactivo, isto é, obtém simultaneamente rendimentos do trabalho industrial e da agricultura. [...]”(p.66)

“A distância entre representantes e representados torna possível a carnalização da política. Por carnalização da política entendo a assimilação mimética de padrões de actuação dos Estados e das sociedades políticas dos países centrais, sem que os agentes políticos os interiorizem nas orientações operacionais da acção política e os convertam em práticas políticas coerentes e duradouras. Esse tipo de assimilação produz um efeito de descanonização dos processos ideológicos, um distanciamento lúdico perante os efeitos da governação e confere a esta um tom geral fársico.” (p. 69)

“É comum considera-se que em Portugal a sociedade civil é fraca. Nos últimos anos tem-se atribuído essa fraqueza à asfixiante força do Estado, pelo que se recomenda o enfraquecimento deste para a sociedade civil possa finalmente prosperar. [...]” (p. 69-70)

“A ponta de verdade dessa concepção está em que a sociedade portuguesa não tem uma tradição de organização formal, centralizada e autônoma de interesses sociais setoriais bem definidos (interesses dos empresários, interesse dos trabalhadores, etc.), capaz de gerar parceiros sociais fortes em permanente diálogo conflitual entre si e com o Estado. [...]” (p. 70)

“Mas se Portugal não tem um Estado-Província, tem, no entanto, uma forte sociedade- providência que colmata em parte as deficiências da província estatal, uma sociedade organizada informalmente segundo modelos tradicionais de solidariedade social. [...]” (p.70)

“A extrapolação idealista a partir deste dado sociológico transforma “o português” em um homem “profundamente humano”, que “não gosta de fazer sofrer e evita conflitos”, que “possui um grande fundo de solidariedade humana” e é extraordinariamente solidário com os vizinhos”. [...] (p. 71)

“Dada a dinâmica transnacional da época presente, não é possível postular futuro e muito menos futuros nacionais. Apenas se poderá dizer que, para ser nosso, o futuro que tivermos não poderá ser reduzido ao futuro dos outros.” (p.73)

Capítulo 4

“Muito mais pacientemente que Saint-Simon – para quem em 1819 começava já a ser demasiado tarde para o século XIX se libertar da herança do século XVIII e assumir a sua especificidade (1977:212) – temos vindo a esperar pelo sentido do século XX.” (p. 75)

O paradigma cultural da modernidade constitui-se antes de o modo de produção capitalista se ter tornado dominante e extinguir-se-á antes de este último deixar de ser dominante.” (p. 76)

Tanto o excesso na cumprimento de algumas das promessas como o défice no cumprimento de outras são responsáveis pela situação presente... uma situação de transição.” (p. 77)

“Assenta em dois pilares fundamentais, o pilar da regulação e o pilar da emancipação... O pilar da regulação é constituído pelo princípio do Estado [de Hobbes]; pelo princípio do mercado [em Locke]; e pelo princípio da comunidade [de Rousseau]... o da emancipação é constituído por três lógicas de racionalidade: ... a estético-expressiva da arte e da literatura; a... moral moral-prática da ética e do direito; e a... cognitivo-instrumental da ciência e da técnica.” (p. 77)

“A racionalidade estético-expressiva articula-se... com o princípio da comunidade, porque nela se condensam as ideias de identidade e de comunhão, sem as quais não é possível a contemplação estética. A racionalidade moral prática liga-se... ao princípio do Estado na medida em que a este compete definir e fazer cumprir um mínimo ético para o que é dotado do monopólio da produção e da distribuição do direito... [e a] racionalidade cognitivo-instrumental tem uma correspondência específica com o princípio do mercado... [onde] se condensam as ideias da individualidade e da concorrência... [e] também porque já no século XVIII são visíveis os sinais da conversão da ciência numa força produtiva.” (p. 77) 

“O excesso reside no próprio objectivo de vincular o pilar da regulação ao pilar da emancipação e de os vincular a ambos à concretização de objectivos práticos de racionalização global da vida colectiva e da individual.” (p. 78)  

“Esta dupla vinculação é capaz de assegurar o desenvolvimento harmonioso de valores tendencialmente contraditórios... a construção abstracta dos pilares confere a cada um deles uma aspiração de infinitude, uma vocação maximalista, quer seja a máxima regulação ou máxima emancipação, que torna problemáticas, se não mesmo impensáveis, estratégias de compatibilização entre eles, as quais necessariamente terão de ser assentes em cedências mútuas e compromissos pragmáticos.” (p. 78)

“O projecto sócio-cultural da modernidade constitui-se entre o século XVI e finais do século XVIII. Só a partir daí se inicia verdadeiramente o teste do seu cumprimento histórico e esse momento coincide com a emergência do capitalismo enquanto modo de produção nos países da Europa que integram a primeira grande onda de industrialização.” (p. 78) 

“[...] a especificidade histórica do capitalismo reside nas relações de produção que instaura entre o capital e o trabalho e são elas que determinam a emergência e a generalização de um sistema de trocas caracterizadamente capitalista.” (p. 78-79)

“O primeiro período cobre todo o século XIX... É o período do capitalismo liberal. O segundo... inicia-se no final do século XIX e atinge seu pleno desenvolvimento no período entre as guerras e nas primeiras décadas depois da 2ª Guerra Mundial... [é o] período do capitalismo organizado. O terceiro período inicia-se em geral nos finais da década de sessenta... e é nele que nos encontramos hoje. Alguns autores designam-no por período do capitalismo financeiro... designo-o provisoriamente por período do capitalismo desorganizado...” (p. 79) 

“O seu fascínio reside em que nele explodem com grande violência as contradições do projecto da modernidade: entre a solidariedade e a identidade, entre a justiça e a autonomia, entre a igualdade e a liberdade.” (p. 80)

“Ao nível da regulação, a ideia do desenvolvimento harmonioso entre os princípios do Estado, do mercado e da comunidade... colapsa e decompõem-se no desenvolvimento sem precedentes do princípio do mercado, na atrofia quase total do princípio da comunidade e no desenvolvimento ambíguo do princípio do Estado sob a pressão contraditória dos dois movimentos anteriores.” (p. 81)

“É que a ligação orgânica... entre a lógica da dominação política e as exigências da acumulação de capital, ao longo do século XIX, concretiza-se e fortalece-se através de múltiplas e sucessivamente mais profundas intervenções do Estado. Paradoxalmente, muitas destas intervenções do Estado são justificadas em nome do princípio do laissez faire, um princípio que preconiza o mínimo de Estado...” (p. 81)

“[...] cada uma das três lógicas se desenvolve segundo processos de especialização e de diferenciação funcional, tão bem analisados por Weber (1978), processos que, ao mesmo tempo que garantem a maior autonomia a cada uma das esferas (arte/literatura, ética/direito, ciência/técnica), tornam cada vez mais difícil a articulação entre elas e sua interpenetração...” (p. 81)

“A primeira assumiu uma forma elitista e é constituída pelo idealismo românico e pelo grande romance realista... o idealismo românico representa... a vocação utópica da realização plena da subjectividade inscrita no projecto da modernidade.” (p. 82)

“A outra manifestação, no domínio moral-prático, assume outra forma desviante, a da marginalização, e é constituída pelos vários projectos socialistas radicais, tanto o chamado socialismo utópico, como o chamado socialismo científico.” (p. 83)

“O importante é verificar que este primeiro período, ao mesmo tempo que experiência a contradição nua e crua dos objectivos do projecto da modernidade, é capaz ainda de manifestar, mesmo que de forma desviante, a vocação de radicalidade do projecto e, nessa medida, recusa-se a aceitar a irreparabilidade do défice da sua realização histórica.” (p. 83)

“O segundo período é verdadeiramente a idade positiva de Comte. Procura distinguir no projecto da modernidade o que é possível e o que é impossível de realizar numa sociedade capitalista em constante processo de expansão, para de seguida se concentrar no possível, como se fosse único.” (p. 83)

“[...] alarga o campo do possível de modo a tornar menor ou, no mínimo, menos visível o défice de cumprimento do projecto. Este processo histórico de concentração/exclusão parte da ideia da irreversibilidade do défice para eliminar, em momento posterior, a própria ideia do défice.” (p. 84)

“O princípio do mercado continua a expansão pujante do período anterior... O capital industrial, financeiro e comercial concentra-se e centraliza-se; proliferam os cartéis;... aprofunda-se a luta imperialista pelo controlo dos mercados e das matérias-primas;...surgem as grandes cidades industriais...” (p. 84)

“[...] [há uma] rematerialização da comunidade através da emergência das práticas de classe e da tradução destas em política de classe. Este processo de rematerialização social e política é um dos aspectos mais característicos deste período e o seu dinamismo deve-se, em boa parte, às transformações na composição das classes trabalhadoras...” (p. 84)

“A sua articulação cada vez mais compacta com o mercado evidencia-se na progressiva regulamentação dos mercados, nas ligações dos aparelhos do Estado aos grandes monopólios, na condução das guerras e de outras formas de luta política pelo controlo imperialista dos mercados, na crescente intervenção do Estado na regulação e institucionalização dos conflitos entre o capital e o trabalho.” (p. 84-85)

“Todas estas transformações ao nível da regulação tiveram por objectivo ou conseqüência redefinir o projecto da modernidade em termos do que era possível na sociedade capitalista...” (p. 85)

“[...]as transformações podem ser simbolizadas pela passagem da cultura da modernidade ao modernismo cultural. O modernismo designa aqui a nova lógica da racionalidade moral-prática, como para a racionalidade científico-técnica.” (p. 85)

“[...] o que caracteriza mais profundamente o modernismo é a sua ‘ansiedade de contaminação’, da contaminação com a política ou com a cultura popular ou de massas...” (p. 85)

“No caso da moral-prática está presente, por um lado, na forma política do Estado que ao mesmo tempo que penetra mais profundamente na sociedade fá-lo através de soluções legislativas, institucionais e burocráticas que o afastam progressivamente dos cidadãos, aos quais, de resto, é pedida cada vez a obediência passiva em substituição activa. E está, por outro lado, presente na emergência e consolidação de uma ciência jurídica, dogmática e formalista...” (p. 86)

“[...] pelo surgimento das várias epistemologias positivistas, pela construção de um ethos científico ascético e autónomo perante os valores e a política, pela glorificação de um conhecimento científico totalmente distinto do conhecimento do senso comum e não contaminado por ele, e ainda pela crescente especialização das disciplinas...” (p. 86)

“O projeto da modernidade cumpre-se assim em excesso porque em tudo o que cumpre excede todas as expectativas... e em tudo o que não cumpre é suficientemente convincente para negar que haja algo ainda a cumprir.” (p. 86)

“O terceiro período, que começa nos anos sessenta...” ( p. 87)

“[...] o capitalismo só pode ser dito desorganizado na medida em que colapsaram no terceiro período muitas das formas de organização que tinham vigorado no período anterior.” (p. 87)

“O princípio do mercado adquiriu pujança sem precedentes, e tanto que extravasou do econômico e procurou colonizar tanto o princípio do Estado, como o princípio da comunidade...” (p. 87)

“No plano econômico, os desenvolvimentos mais dramáticos são os seguintes: o crescimento explosivo do mercado mundial, propulsionado por um novo agente criado à sua medida – as empresas multinacionais -, torna possível contornar, se não mesmo neutralizar, a capacidade de regulação nacional da economia;” ( p. 88)

“[...] os mecanismos corporativos de regulação dos conflitos entre capital e trabalho, estabelecidos a nível nacional no período anterior, enfraquecem e a relação salarial torna-se mais precária...” (p. 88)

“O princípio da comunidade atravessa transformações paralelas. A rematerialização da comunidade, obtida no período anterior através do fortalecimento das práticas de classe, parece enfraquecer de novo...” (p. 88) 

[...] em paralelo com uma certa descentração das práticas de classe e das políticas de distribuição de recursos em que se tinham cristalizado (de que é máximo exemplo o Estado-Providência), surgem novas práticas de mobilização social, os novos movimentos sociais orientados para reivindicações pós-materialistas (a ecologia, o antinuclear, o pacifismo);” (p. 88)

“O Estado nacional parece ter perdido em parte a capacidade e em parte a vontade para continuar a regular as esferas da produção (privatizações, desregulação da economia) e da reprodução social (retracção das políticas sociais, crise do Estado-Providência);... esta fraqueza externa do Estado é, no entanto, compensada pelo aumento do autoritarismo do Estado... pela própria congestão institucional da burocracia... e em parte... pelas próprias políticas do Estado no sentido de devolver à sociedade civil competências e funções que assumiu no segundo período e que agora parece... incapaz de exercer e desempenhar.” ( p. 89)

“[...] nenhum dos princípios da regulação, quer seja o mercado, quer seja o Estado, quer seja a comunidade, parece capaz de, por si só, garantir a regulação social...” (p. 89)

“As sociedades capitalistas avançadas parecem bloqueadas, condenadas a viver do excesso irracional do cumprimento do projecto da modernidade e a racionalizar num processo de esquecimento ou de autoflagelação o défice vital das promessas incumpridas.” (p. 90)

“No entanto, a modernização científico-tecnológica e neoliberal alastra hoje, paradoxalmente, ma mesma medida em que alastra a sua crise, certificada por aquilo que parecem ser as suas conseqüências inevitáveis o agravamento da injustiça social através do crescimento imparável e recíproco da concentração da riqueza e da exclusão social, tanto a nível nacional como a nível mundial; a devastação ecológica e com ela a destruição da qualidade e mesmo da sustentabilidade da vida do plano.” (p. 91)

“[...] a modernidade confiou-nos numa ética individualista, uma micro-ética que no impede de pedir, ou sequer pensar, responsabilidades por acontecimentos globais...” (p. 91)

“[...] começa a emergir um novo jus-naturalismo assente numa nova concepção dos direitos humanos e do direito dos povos à autodeterminação, e numa nova ideia de solidariedade, simultaneamente concreta e planetária.” (p. 91)

“Por um lado, a explosão da realidade mediática e informacional torna possível uma competência democrática mais alargada. Por outro lado, a retracção simbólica da produção face ao consumo pode vir a traduzir-se na redução da semana de trabalho... e de tal redução pode resultar uma maior disponibilidade para actividades socialmente úteis e para o exercício da solidariedade.” ( p. 92)

“[...] a opção radical e cada vez mais incontornável é entre enfrentar a possibilidade de este projecto estar exausto, incumprível no que dele não foi cumprido até agora, ou continuar na sua possibilidade de regeneração e de continuar a esperar pela sua completude...” (p. 92)

“[...] penso que o que quer que falte concluir na modernidade não pode ser concluído em termos modernos sob pena de nos mantermos prisioneiros da mega-armadilha que a modernidade nos preparou: a transformação incessante das energias emancipatórias em energias regulatórias. Daí a necessidade de pensar em descontinuidades, em mudanças paradigmáticas e não meramente subparadigmáticas.” (p. 93)

“A tese principal que aqui defenderei é a seguinte: a ideia moderna da racionalidade global da vida social e pessoal acabou por se desintegrar numa miríade de mini-racionalidades ao serviço de uma irracionalidade global inabarcável e incontrolável.” ( p. 102)

“[...] a pujança do capitalismo produziu dois efeitos complementares: por um lado, esgotou o projecto da modernidade, por outro lado, fê-lo de tal modo que se alimenta desse esgotamento e se perpetua nele.” (p. 102)

“A relação entre o moderno e o pós-moderno é, pois, uma relação contraditória. Não é de ruptura total como querem alguns, nem de linear continuidade como querem outros. É uma situação de transição em que há momentos de ruptura e momentos de continuidade.” (p.103)

“[...] são cada vez mais numerosos os grupos sociais a manifestar um interesse veemente na resolução de alguns problemas, como sejam a catástrofe ecológica, o perigo da guerra nuclear, a paz, a diferença sexual e racial. E, no entanto, quanto maior é o interesse destes grupos, mais sentida é a sua incapacidade para conseguir a sua resolução.” (p. 107)

“Na medida em a resolução destes problemas se prende com a superação do capitalismo, encontramo-nos numa situação quase diametralmente inversa da do Manifesto: é grande o nosso interesse nessa transformação mas ao mesmo tempo sentimos eu temos muito a perder com ela.” (p. 107)

“As mini-racionalidades pós-modernas estão, pois, conscientes dessa irracionalidade global, mas estão também conscientes que só podem combater localmente. Quanto mais global for o problema, mais locais e mais multiplamente locais devem ser as soluções.” ( p. 111)

Capítulo 5

O autor pretende uma separação de poderes, distinguindo os poderes da sociedade e do Estado, visando assim alcançar o objetivo do capitalismo, sem que o Estado interfira de maneira negativa na economia do país, tendo como o maior objetivo entre a separação de econômico e do político, um desenvolvimento mais rápido, sem que um poder venha a interferir em outro.

“Nos últimos quinze anos foram apresentadas duas concepções radicalmente difetentes sobre a natureza do desenvolvimento capitalista. Segundo uma delas, formulada por I. Wallerstein, “o capitalismo nunca funcionou, nem pode, em caso algum, funcionar de acordo com a sua ideologia e, por isso, o triunfo final dos valores capitalistas será o sinal da crise final do capitalismo enquanto sistema” (1980:374). Ao contrário, segundo a outra concepção, formulada por A. Hirschman, e já referida no capítulo anterior, o capitalismo não pode ser criticado por ser repressivo, alienante ou unidimensional em contraste com os seus valores básicos, porque o capitalismo realizou precisamente o que se pretendia que se realizasse, nomeadamente “reprimir certos impulsos e tendências e produzir uma personalidade humana menos multifacetada, menos imprevisível e mais ‘unidimensional’” (p. 115).

“[...] o Estado é crescentemente ineficaz, cada vez mais incapaz de desempenhar as funções de que se incumbe. De acordo com esta concepção, o Estado carece de recursos financeiros (o argumento da crise financeira) ou de capacidade institucional ( o argumento da incapacidade da burocracia do Estado para se adaptar ao acelerado ritmo de transformação social e económica) ou carece ainda dos mecanismos que na sociedade civil orientam as acções e garantem sua eficácia (o argumento da falta de sinais de mercado na actuação do Estado)” (p. 116).

“[...] O Estado, enquanto realidade construída, é a condição necessária da realidade espontânea da sociedade civil” (p. 118).

“[...] A sociedade civil é o “sistema de necessidades”, a destruição da unidade da família e a atomização dos seus membros, em suma, o domínio dos interesses particularísticos e do egoísmo, em um estádio que será superado pele Estado, o supremo unificador dos interesses, a ideia universal, a concretização plena da consciência moral” (p. 120).

“A meu ver, a separação entre o político e o económico permitiu, por um lado, a naturalização da exploração económica capitalista, e, por outro, a neutralização do potencial revolucionário da política liberal, dois processos que convergiram para a consolidação do modelo capitalista das relações sociais” (p. 122)

“Por um lado, nem a sociedade civil pós-burguesa ou antimaterialista, nem a sociedade civil socialista forma pensadas pelas distinção Estado/sociedade civil tal como esta se construiu historicamente e merecem por isso consideração separada” (p. 123).

“A meu ver, o que está verdadeiramente em causa na “reemergência da sociedade civil” no discurso dominante é um reajustamento estrutural das funções do Estado por via do qual o intervencionismo social, interclassista, típico do Estado-Providência, é parcialmente substituído por um intervencionismo bicéfalo, mais autoritário face ao operariado e a certo sectores das classes médias (por exemplo, a pequena burguesia assalariada) e mais diligente no atendimento das exigências macro-económicas da acumulação de capital (sobretudo do grande capital). É inegável que a “reemergência da sociedade civil” tem um núcleo genuíno que se traduz na reafirmação dos valores do autogoverno, da expansão da subjectividade, do comunitarismo e da organização autónoma dos interesses e dos modos de vida. Mas esse núcleo tende a ser omitido no discurso dominante ou apenas subscrito na medida em que corresponde às exigências do novo autoritarismo” (p. 124)

“[...] a natureza política do poder não é um atributo exclusivo de uma forma de poder. É antes o efeito global da combinação entre as diferentes formas de poder” (p. 127).

“[...] a distinção Estado/sociedade civil foi elaborada em função das condições económicas sociais e políticas dos países centrais num período bem definido da sua história” (p. 127).

“[...] a autonomia da sociedade civil nas sociedades centrais significa basicamente que o espaço de produção moldou, segundo as suas necessidades e os seus interesses, o espaço da cidadania e, portanto, o Estado” (p. 128).

“Este isomorfismo foi a base social da chamada racionalidade formal do Estado, da sua capacidade para exercer eficazmente as suas funções dentro dos limites hegemonicamente estabelecidos. O isomorfismo significou, por exemplo, que as três formas de poder – o patriarcado, a exploração e a dominação – pudessem ser funcionalmente muito diferenciadas e autónomas e, ao mesmo tempo, convergir substancialmente nos efeitos do exercício dessa autonomia, cada uma delas confirmando e potenciando a eficácia das restantes” (p. 129).

“A grande heterogeneidade interna dos vários espaços estruturais e a não correspondência entre os seus diferentes requisitos de reprodução produziu um défice de hegemonia, ou, se preferirmos, um défice de objetos nacionais, o qual foi coberto ou compensado pelo “excesso” de autoritarismo do Estado” (p. 129).

“O particularismo da actuação do Estado pode ser finalmente uma forma de interpenetração entre o espaço de cidadania e o espaço mundial e, portanto, entre dominação e troca desigual nos casos em que os países centrais ou as organizações internacionais que eles controlam se apropriam de parte da soberania do Estado nacional” (p. 130).

“O autoritarismo estatal, por ser relativamente ineficaz, é não só incompleto como contraditório, o que, por sua vez, contribui para a grande heterogeneidade e fragmentariedade da actuação do Estado” (p. 131).

Capítulo 6

O assunto aqui proposto, visa uma evolução do Estado a partir de sua identidade, porém um Estado que não possui uma identidade própria, como é o caso de Portugal, não terá a mesma evolução dos países centrais da Europa, ou seja, deve-se re-analizar as culturas de cada nação, para que assim se alcance uma real identidade.

“O que sabemos de novo sobre os processos de identidade e identificação, não sendo muito, é, contudo, precioso para avaliar as transformações por que está a passar a teoria social em função da quase obsessiva preocupação com a questão da identidade que tem vindo a dominá-la nos últimos tempos e que, tudo leva a crer, continuará a dominá-la na década entrante” (p. 136).

“[...]Na tensão entre subjectividade individual e subjectividade colectiva, a prioridade é dada à subjectividade individual; na tensão entre subjectividade contextual e subjectividade abstracta, a prioridade é dada à subjectividade abstracta” (p. 137).

“[...]A recontextualização da identidade proposta pelo marxismo contra o individualismo e o estatismo e o estatismo abstractos é feita através do enfoque nas relações sociais de produção, no papel constitutivo destas, nas ideias e nas práticas dos indivíduos concretos e nas relações assimétricas e diferenciadas destes com o Estado” (p. 140).

“[...]sob a égide do capitalismo, a modernidade deixou que as múltiplas identidades e os respectivos contextos intersubjectivos que a habitavam fossem reduzidos à lealdade terminal ao Estado, uma lealdade omnívora das possíveis lealdades alternativas” (p. 142).

“Tudo parece ter começado a mudar nos últimos anos e as revisões profundas por que estão a passar os discursos e as práticas identitárias deixam no ar a dúvida sobre se a concepção hegemónica da modernidade se equivocou na identificação das tendências dos processos sociais, ou se tais tendências se inverteram totalmente em tempos recentes, ou ainda, sobre se está perante uma inversão de tendências ou antes perante cruzamentos múltiplos de tendências opostas sem que seja possível identificar os vectores mais potentes. Como se calcula, as dúvidas são acima de tudo sobre se o que presenciamos é realmente novo ou se é apenas novo o olhar com que o presenciamos” (p. 143 e 144).

“A recontextualização e reparticularização das identidades e das práticas está a conduzir a uma reformulação das interrelações entre os diferentes vínculos atrás referidos, nomeadamente entre o vínculo nacional classista, racial, étnico e sexual” (p. 145).

“O que há de mais característico na actual crise de regulação social é que ela ocorre sem perda de hegemonia da dominação capitalistas. Por outras palavras, ao contrário do que se sucedeu em épocas anteriores, a crise de regulação é também uma crise de emancipação, o que constitui afinal uma outra manifestação do colapso ou da perversão das energias emancipatórias da modernidade em energias regulatórias[...]” (p. 146 e 147).

“[...]A recontextualização das identidades exige, nas condições actuais, que o esforço analítico e teórico se concentre na dilucidação das especificidades dos campos de confrontação e de negociação em que as identidades se formam e dissolvem e na localização dessas especificidades nos movimentos de globalização do capital e, portanto, no sistema mundial.” (p. 147 e 148)

“As consequências para a relação colonial decorrentes do caracter semiperiférico de Portugal não se quadaram pelos aspectos político-económicos nem limitaram o seu âmbito ao âmbito dessa relação. O decisivo foi a identidade cultural que engendraram e o modo como esta foi interiorizada pela sociedade portuguesa ao longo dos últimos cinco séculos” (p. 150).

“Este défice de diferenciação e de identificação, se, por um lado, criou um vazio substantivo, por outro, consolidou um forma cultural muito específica, a fronteira ou zona fronteiriça” (p. 152).

“[...]o Brasil e os países africanos nunca foram colónias plenas. Fiel à sua natureza semiperiférica, a cultura portuguesa estendeu a elas a zona fronteiriça que lhes permitiu usar Portugal como passagem de acesso às culturas centrais, como aconteceu com as elites culturais do Brasil a partir do século XVIII e com as africanas sobretudo no nosso século” (p. 154).

“[...]Negativo é o facto de a política estatal de cultura e propaganda não reconhecer a riqueza e as virtualidades que se escondem sob essa suposta negatividade. A riqueza está, acima de tudo, na disponibilidade multicultural da zona fronteiriça” (p. 155).

Capítulo 7

Na terceira parte do livro Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade - Cidadania, Emancipação e Utopia - Boaventura aborda que a judicialização da sociedade tem aumentado nos países desenvolvidos.

“A sociologia do direito só se constituiu em ciência social, na acepção contemporânea do termo, isto é, em ramo especializado da sociologia geral, depois da segunda guerra mundial. Foi então, que, mediante o uso de técnicas e métodos de investigação empírica e mediante a teorização própria feita sobre os resultados dessa investigação, a sociologia do direito verdadeiramente construiu sobre o direito um objetivo teórico específico, autônomo, quer em relação à dogmática jurídica, quer em relação à filosofia do direito. [...] ( p. 161)

“[...] as articulações do direito com as condições e as estruturas sociais em que opera, o debate sem dúvida polarizador é o que opõe os que defendem uma concepção de direito enquanto variável dependente, nos termo da qual o direito se deve limitar a acompanhar e a incorporar os valores sociais e os padrões de conduta espontânea [...].” (p. 162)

“No primeiro quartel do nosso século a visão normativa substantivista do direito continuou a dominar, ainda que com nuances, o pensamento sociológico sobre o direito. [...]” (p. 163)

“Esta tradição intelectual diversificada mas em que domina a visão normativista e substantivista do direito teve uma influência decisiva na constituição do objetivo da sociologia do direito no pós-guerra. [...]” (p. 163)

“Cabe agora referir brevemente as condições sociais que, juntamente com as condições teóricas, possibilitaram a orientação do interesse sociológico para as dimensões processuais, institucionais e organizacionais do direito. Distingo duas condições principais. A primeira diz respeito às lutas sociais protagonizadas por grupos sociais até então em tradição histórica de ação coletiva de confrontação, os negros, os estudantes, amplos setores da pequena burguesia em luta por novos direitos sociais no domínio da segurança social, habitação, educação, transporte, meio ambiente e qualidade de vida, etc., movimentos sociais em que em conjugação (por vezes difícil) com o movimento operário procuraram aprofundar o conteúdo democrático dos regimes saídos do pós-guerra. [...]” (p. 165)

“A segunda condição social do interesse da sociologia pelo processo e pelos tribunais é constituída pela eclosão, na década de 60, da chamada crise da administração da justiça, uma crise de cuja persistência somos hoje testemunhas. [...]” (p. 165)

“O tema do acesso à justiça é aquele que mais diretamente equaciona as relações entre o processo civil e a justiça social, entre igualdade jurídico-formal e desigualdade sócio-econômica. [...]” (p. 167)

“No princípio do século, tanto na Áustria como na Alemanha foram frequentes as denúncias da discrepância entre a procura e a oferta da justiça e foram várias as tentativas para a minimizar, quer por parte do Estado quer por parte dos interesses organizados das classes sociais mais débeis. [...]” (p. 167)

[...] a contribuição da sociologia consistiu em investigar sistemática e empiricamente os obstáculos ao acesso efectivo à justiça por parte das classes populares com vista a propor as soluções que melhor os pudessem superar. Muito em geral pode dizer-se que os resultados desta investigação permitiram concluir que eram três tipos esses obstáculos: econômicos, sociais e culturais. [...]” (p. 168)

“Estas verificações têm levado a sociologia judiciária a concluir que as reformas do processo, embora importantes para fazer baixar os custos econômicos decorrentes da lentidão da justiça, não são de modo nenhum uma panacéia [...]. (p. 169)

Os estudos italianos sobre a ideologia da magistratura não assentam no comportamento decisional, mas antes nos documentos públicos, manifestos, discursos, estatutos organizativos em que os magistrados, individual ou coletivamente, definiam o perfil ótimo da função judicial e das suas interações com o poder político e como sociedade em geral. [...] (p. 173)

“Ainda no âmbito da administração da justiça como organização profissional, são de salientar os estudos sobre o recrutamento dos magistrados e a sua distribuição territorial. Dentro do mesmo quadro teórico, mas de uma perspectiva muito diferente, são os estudos dirigidos a conhecer as atitudes e as opiniões dos cidadãos sobre a administração da justiça, sobre os tribunais e sobre os juízes. [...]” (p. 174)

“Todos esses estudos têm vindo a chamar a atenção para um ponto tradicionalmente negligenciado: a importância crucial dos sistemas de formação e de recrutamento dos magistrados e a necessidade urgente de os dotar de conhecimento culturais, sociológicos e econômico que os esclareçam sobre as suas próprias opções pessoais e sobre o significado político do corpo profissional a que pertencem, com vista a possibilitar-lhes um certo distanciamento crítico e uma atitude de prudente vigilância pessoal no exercício das suas funções numa sociedade cada vez mais complexa e dinâmica.” (p. 174)

“A democratização da administração da justiça é uma dimensão fundamental da democratização da vida social, econômica e política. Essa democratização tem duas vertentes. A primeira diz respeito à constituição interna do processo [...]”. “[...] a segunda vertente diz respeito à democratização do acesso à justiça. [...]” (p. 177)

“Estas medidas de democratização, apesar de amplas, têm limites óbvios. A desigualdade da proteção dos interesses sociais dos diferentes grupos sociais está cristalizada no próprio substantivo, pelo que a democratização da administração da justiça, mesmo se plenamente realizada, não conseguirá mais do que igualizar os mecanismos de reprodução da desigualdade. [...]” (p. 177)

“A diminuição relativa do contencioso detectada em vários países tem sido considerada disfuncional, ou seja, como negativa em relação ao processo de democratização da justiça. [...]” (p. 178)

“A contribuição maior da sociologia para a democratização da administração da justiça consiste em mostrar empiricamente que as reformas do processo ou mesmo do direito substantivo não terão muito significado se não forem contempladas com outros dois tipos de reforma. Por um lado, a reforma da organização judiciária, a qual não pode contribuir para a democratização da justiça se ela própria não for internamente democrática [...]” (p. 180)

“[...] Por outro lado, a reforma da formação e dos processos de recrutamento dos magistrados, sem a qual a ampliação dos poderes do juiz propostas em muitas das reformas aqui referidas carecerá de sentido e poderá eventualmente ser contraproducente para a democratização da administração da justiça que se pretende. [...] (p. 180)

“É necessário aceitar os riscos de uma magistratura culturalmente esclarecida. Por um lado, ela reivindicará o aumento de poderes decisórios, mas isso como se viu vai no sentido de muitas propostas e não apresenta perigos de maior se houver um adequado sistema de recursos. Por outro lado, ela tentará a subordinar a coesão corporativa à lealdade a ideais sociais e políticos disponíveis na sociedade. [...]” (p.180-181)

Capítulo 8

“Um pouco por todo o lado a universidade confronta-se com uma situação complexa: são lhes feitas exigências cada vez maiores  por parte da sociedade ao mesmo tempo que se tornam cada vez mais restritivas as políticas de financiamento das suas atividades por parte do Estado”. (p. 187)

“Duplamente desafiada pela sociedade e pelo Estado, a universidade não parece preparada para defrontar os desafios, tanto mais do que estes apontam para transformações profundas e não para simples reformas parcelares.” ( p. 187)

“A universidade sofre uma crise de legitimidade na medida em que torna socialmente visível a falência dos objetivos coletivamente assumidos”. ( p. 190)

“A gestão das tensões produzidas por esta tripla crise das universidades é tanto mais complexa quando é certo que as contradições entre as funções manifestadas da universidade “sofrem” a interferência das funções latentes da universidade. ( p. 190)

Esta distinção entre funções manifestadas e funções latentes com longa tradição na sociologia, é sobretudo útil para analisar relações intersistemáticas , no caso entre o sistema universitário e o sistema de ensino superior, ou entre o sistema educativo, ou ainda entre este o sistema global.” (p. 190-191)

“A universidade  desempenha esta função ao acolher e ao deixar permanecer no seu seio por um período mais ou menos prolongado gente que não se arrisca a entrar no mercado de trabalho com credenciais de pouco valor e que se serve da universidade como compasso de espera  entre conjunturas, usando-a produtivamente para acumular títulos e qualificações que fortaleçam  num momento posterior sua posição no mercado. “( p. 191)

“Por outro lado perante uma forte pressão social no sentido de expansão do sistema universitário,  a universidade pode responder esta pressão mediante o desempenho da função latente de”arrefecimento das aspirações de filhos e filhas das classes populares”, ou seja, reestruturando-se  de modo a dissimular, sob a capa de uma falsa democratização, a continuação se um sistema seletivo, elitista.”( p. 191)

“Um nível mais geral, a sociologia tem vindo a mostrar como as aparentes contradições entre funções no seio do sistema educativo podem escolher articulações mais profundas entre este e outros subsistemas sociais, articulações detectáveis nas distinções entre funções sociais ou entre funções instrumentais e funções simbólicas.”( p. 191)

“A resposta da universidade a esta transformação constitui em tentar compatibilizar no seio a educação humanística a formação profissional e assim compensar a  perda da centralidade cultural provocada pela emergência da cultura de massas com reforço da centralidade na formação da força de trabalho especializada.” (p. 196)

“A  interpelação da universidade no sentido de participar ativamente no desenvolvimento tecnológico do sistema produtivo nacional tem vindo a ser formulada cada vez maior insistência e produz-se em duas problemáticas principais: a da natureza da investigação básica e a das virtualidades e limites da investigação aplicada a universidade. “(p. 201)

“O imaginário universitário é dominado pela idéia de que os avanços de conhecimento cientifico são propriedade da comunidade cientifica, ainda que a sua autoria possa se individualizada” (p.203)

“O fato de o direito e a educação ter vindo a significar, para os filhos das famílias operarias, o direito de formação técnica profissional é revelador do modo como a reivindicação democrática da educação foi subordinada, no marco das relações sociais capitalistas, as exigências do desenvolvimento tecnológico da produção industrial fortemente sentidas a partir da década de sessenta.” ( p.213).

“Á medida que a universidade perde centralidade torna-se mais fácil justificar e até impor a avaliação de seu desempenho. “(p. 216)

“A universidade tem tendido a ver sobretudo a contradição e a  assumir uma posição definitiva,traduzida  no accionamento dos vários mecanismos de dispersão. “((p.216)

“Quanto á definição do produto da universidade, as dificuldades são o correlato da multiplicidade de fins que a universidade tem vindo a incorporar e que a cima fiz referência. Perante tal multiplicidade perguntar-se-á qual é o produto da universidade ou se quer se fez sentido falar em produto.” (p. 216)

“O perigo da desvalorização especificidade de universidade torna –se ainda mais evidente quando se tem em conta o segundo vector, o processo de produção. A universidade é uma organização de trabalho intensiva, isto é exige uma mobilização relativamente grande de força de trabalho (docentes, funcionários e estudantes) quando comparada com a mobilização de outros fatores de produção.”( p. 218)

“Por todas as razões, a universidade vê-se confrontada com uma crescente pressão para se deixar avaliar,ao mesmo tempo que se acumulam as condições para que a titularidade da avaliação” (p.219)

“A titularidade da avaliação poe-se sobretudo quando se trata de avaliações globais,avaliações de departamentos, de faculdade ou mesmo de universidade no seu lado” (p.219)

“ A posição defensiva “dispersiva” da universidade neste domínio  tem uma justificação plausível: a universidade não tem hoje o poder social político para impor condições que garantam uma avaliação equilibrada e despreconceituosa do seu desempenho” (p.220)

“A idéia de universidade moderna faz parte integrante do paradigma da modernidade.As múltiplas crises da universidade são afloramentos da  crise do paradigma da modernidade e só são, por isso, resolúveis no contexto da revolução desta última” (p.223)

“A universidade constiui-se em sede privilegiada e unificada de um saber privilegiando feito de saberes produzidos  pelas três racionalidades da modernidade: a racionalidade cognitivo- instrumental das ciências, a racionalidade moral-prática do direito e da ética e a racionalidade  estético-expressiva das artes e da literatura.” ( p. 223)

“A crise deste paradigma não pode deixar de acarretar a crise da universidade moderna” (p.223)

“A universidade que se quiser pauta pela ciência pós- moderna deverá transformar seus processos de investigação,de ensino e de extensão seguindo três princípios: a prioridade da racionalidade moral-prática e da racionalidade cognitivo; a dupla ruptura epistemológica a criação de um novo senso comum; a aplicação edificante da ciência no seio de comunidades interpretativas” (p.223)

“A universidade é talvez a única instituição nas sociedades contemporâneas  que pode pensar até ás raízes as razões  por que não pode agir em conformidade com o pensamento. É esse excesso de lucidez que coloca a universidade numa posição privilegiada para criar e fazer proliferar comunidades interpretativas.” ( p. 225)

“Numa sociedade cuja quantidade e qualidade de vida assenta em configurações cada vez mais complexas de saberes, a legitimidade da universidade só será cumprida quando as actividades, hoje ditas de extensão, se aprofundarem tanto que desapareçam enquanto tais passem a ser integrante da actividades de investigação e de ensino.” ( p. 225)

“A diluição da universidade em tudo que se presente aponta para o futuro da sociedade exige que a universidade reivindique a autonomia institucional e a especificidade. A universidade não poderá promover a criação de comunidades interpretativas na sociedade se não as souber criar no seu interior, entre docentes ,estudantes e funcionários.” (p. 225)

“A universidade só deve dispor-se estrategicamente para compensar o inevitável declínio das suas funções materiais como fortalecimento das suas funções simbólicas. Numa sociedade de classes, a universidade deve promover transgressões interclássicas. Numa sociedade á beira do desastre ecológico, a universidade deve desenvolver uma apurada consciência ecológica. Numa sociedade de festas e prazeres industrializados, a universidade deve pós modernizar os saberes festivos da pré- modernidade. O verdadeiro  mercado para o saber universitário reside sempre no futuro.” (p. 226)

“A universidade deve garantir o desenvolvimento equilibrado das ciências naturais, das ciências sociais e das humanidades, o que pode envolver no curto prazo, uma política de favorecimento activo, tanto das ciências sociais, como das humanidades. Não é viável uma universidade que não disponha de amplas oportunidades de investigação e ensino nestas áreas ou as não saiba integrar na investigação e ensino das ciências naturais.” (p.227)
“As actividades sociais (sobretudo as actividades sociais da natureza), artistas e escritores devem ser uma presença constante nas actividades curriculares de investigação e de ensino, pois que as normas sociais da natureza não são dedutíveis  da “ciência normal”. (p. 227)

“As chamadas actividades de extensão que a universidade assumiu sobre tudo a partir dos anos sessenta constituem a relação frustrada de um objetivo genuíno. Não devem ser, por tanto, pura e simplesmente eliminadas.Devem ser transformadas. As actividades de extensão procuraram “extender” a universidade sem a transformar; a prestação de serviço a outrem nunca foi concebida como prestação de serviço a própria universidade tais actividades estiveram, no entanto,ao serviço de um objetivo genuíno,o descumprir a “responsabilidade social de uma universidade”,um objetivo cuja genuinidade,de resto, reside no reconhecimento da tradicional “irresponsabilidade social da universidade”.(p. 229)

“A universidade deverá criar espaços de interacção com a comunidade envolvente, onde seja possível identificar eventuais actuações e definir prioridades. Sempre que possível as actividades de extensão devem incluir estudantes e mesmo funcionários,devem ser pensadas novas formas de “ serviço cívico” em associações, cooperativas e comunidades,e etc.,etc. A avaliação destas actividades devem dar atenção privilegiada ao desempenho do  know-how ético, a analise dos impactos e dos efeitos perversos e sobretudo a aprendizagem concreta de outros saberes no processo de “ extensão”.(p. 229)

“ A autonomia institucional da universidade o facto de dispor de uma população significativa relativamente distanciada das pressões do mercado, das prestações sociais e políticas,e ainda o facto de essa população estar sujeita a critérios de eficiência muito específicos e relativamente flexíveis, fazem como fazem com que a universidade tenha potencialidades para ser um dos equivalentes funcionais do empreendedor liquidado pela crescente rigidez social.” (p.230)

“A mera permanência institucional da universidade faz com que a sua existência material tenha uma dimensão simbólica particularmente tensa. Esta dimensão é um recurso inestimável, mesmo que os símbolos que se tenham traduzido devam ser substituídos. Numa sociedade desencantada,o re-encantamento da universidade pode ser uma das vias para simbolizar o futuro. “(p. 230)

Capítulo 9

Subjectividade, cidadania e emancipação (p. 235)

“Se é complexa a relação entre subjectividade e cidadania, é-o ainda mais a relação entre qualquer delas e a emancipação. Porque a constelação ideológica-cultural hegemónica do fim do século parece apontar para a reafirmação da subjectividade em detrimento da cidadania e para a reafirmação desigual de ambas em detrimento da emancipação” (p. 235).

“Foucault tem certamente razão ao denunciar o excesso de controle social produzido pelo poder disciplinar e pela normalização técnico-científica com que a modernidade domestica os corpos e regula as populações de modo a maximizar a sua utilidade social e a reduzir, ao mais baixo custo, o seu potencial político. [...] Penso, no entanto, que Foucault – e, de certo modo, também Adorno e Horkheimer, ainda que com uma argumentação e um diagnóstico muito distintos – exagera ao inscrever esse excesso de regulação na matriz do projecto da modernidade, a ponto de fazer dele não só o único resultado, mas também o único resultado possível deste projecto. No quarto capítulo procurei mostrar que o projecto da modernidade é caracterizado, em sua matriz, por um equilíbrio entre regulação e emancipação, convertido nos dois pilares sobre os quais se sustenta a transformação radical da sociedade pré-moderna. [...] O equilíbrio pretendido entre a regulação e a emancipação obtém-se pelo desenvolvimento harmonioso de cada um dos pilares e das relações dinâmicas entre eles” (p. 235-236).

“À medida que a trajetória da modernidade se identificou com a trajetória do capitalismo, o pilar da regulação veio a fortalecer-se à custa do pilar da emancipação num processo histórico não linear e contraditório, com oscilações recorrentes entre um e outro, nos mais diversos campos da vida colectiva e sob diferentes formas [...]” (p. 236).

“[...] o desequilíbrio entre a regulação e emancipação e o consequente excesso de regulação em que veio a saldar-se resultou de desequilíbrios, tanto no seio do pilar da regulação, como no da emancipação. [...] Neste capítulo, darei atenção privilegiada ao desequilíbrio que ocorreu no pilar da regulação” (p. 236-237).

Subjectividade e cidadania na teoria política liberal (p. 237).

“O desequilíbrio no pilar da regulação consistiu globalmente no desenvolvimento hipertrofiado do princípio do mercado em detrimento do princípio do Estado e de ambos em detrimento do princípio da comunidade” (p. 237).

“A teoria política liberal é a expressão mais sofisticada deste desequilíbrio. Ela representa, no plano político a emergência da constelação da subjectividade e, como bem nota Hegel, confronta-se desde o início com a necessidade de compatibilizar duas subjectividades aparentemente antagónicas: a subjectividade colectiva do Estado centralizado (Ich-Kollektivität) e a subjectividade atomizada dos cidadãos autómonos e livres (Ich- Individualität). A compatibilização é obtida por via da distinção entre Estado e sociedade civil e do conceito-ficção do contrato social. [...] a teoria política liberal tem vindo a vigorar até aos nossos dias e pode mesmo dizer-se que, no período do capitalismo desorganizado em que nos encontramos, conhece um novo alento, sustentado pela reemergência do liberalismo económico” (p. 237).

“Em primeiro lugar, o princípio da subjectividade é muito mais amplo que o princípio da cidadania. A teoria liberal começa por teorizar uma sociedade onde muitos – no início, a maioria – dos indivíduos livres e autónomos que prosseguem os seus interesses na sociedade civil não são cidadãos, pela simples razão de que não podem participar politicamente na actividade do Estado. As sociedades liberais não podem ser consideradas democráticas senão depois de terem adoptado o sufrágio universal” (p. 238).

“Em segundo lugar, o princípio da cidadania abrange exclusivamente a cidadania civil e política e o seu exercício reside exclusivamente no voto. Quaisquer outras formas de participação política são excluídas ou, pelo menos, desencorajadas [...]. A redução da participação política ao exercício do voto levanta a questão da representação. A representação democrática assenta na distância, na diferenciação e mesmo na opacidade entre representantes e representado. [...] Pela própria natureza desta teoria da representação e também pela interferência dos interesses próprios dos representantes, como é hoje comumente reconhecido pela teoria política, o interesse geral não pode coincidir, quase que por definição, com o interesse de todos” (p. 238).
“Por via do carácter não problemático da representação e da obrigação política em que ela assenta, a base convencional do contrato social acaba por conduzir à naturalização da política, à conversão do mundo numa entidade onde é natural haver Estado e indivíduos e é natural eles relacionarem-se segundo o credo liberal. A naturalização do Estado é o outro lado da passividade política dos cidadãos; a naturalização dos indivíduos é o fundamento da igualdade formal dos cidadãos” (p. 238).  

“Este ponto conduz-me à terceira característica da teoria liberal que pretendo aqui realçar. Esta teoria representa a total marginalização do princípio da comunidade tal como é definido por Rousseau. Ao contrário do liberalismo clássico, Rousseau não vê solução para a antinomia entre a liberdade e autonomia dos cidadãos e o poder de comando do Estado e, por isso, a sua versão do contrato social é muito diferente da do contrato social liberal” (p. 239).

“A quarta característica da teoria liberal é que ela concebe a sociedade civil de forma monolítica. [...] Essa indiferenciação produz dupla ocultação [...]” (p. 239).

“A primeira ocultação reside em que no capitalismo há uma forma de associação “especial” que só cinicamente pode conceber-se como voluntária e onde a formação da vontade assenta na exclusão da participação da esmagadora maioria dos que nela “participam”, isto é, a empresa enquanto unidade básica da organização económica da produção capitalista” (p. 239).

“A segunda ocultação reside em que, ao converter a sociedade civil em domínio privado, a teoria liberal esquece o domínio doméstico das relações familiares, um domínio perante o qual tanto o domínio privado da sociedade civil como o domínio público do Estado são, de facto, domínios públicos” (p. 239).

“A sociedade liberal é caracterizada por uma tensão entre a subjectividade individual dos agentes na sociedade civil e a subjectividade monumental do Estado. O mecanismo regulador dessa tensão é o princípio da cidadania que, por um lado, limita os poderes do Estado e, por outro, universaliza e igualiza as particularidades dos sujeitos de modo a facilitar o controle social das suas actividades e, consequentemente, a regulação social” (p. 240).
“A relação entre cidadania e subjectividade é ainda mais complexa. Para além das idéias de autonomia e liberdade, a subjectividade envolve as idéias de auto-reflexividade e de auto-responsabilidade, a materialidade de um corpo (real ou fictício, no caso as subjectividade jurídica das “pessoas coletivas”), e as particularidades potencialmente infinitas que conferem o cunho próprio e único à personalidade. [...] A igualdade da cidadania colide, assim, com a diferença da subjectividade, tanto mais que o marco da regulação liberal essa igualdade é profundamente selectiva e deixa intocadas diferenças [...]” (p. 240).   

“Esta tensão entre a subjectividade individual e individualista e uma cidadania directa ou indirectamente reguladora e estatizante percorre toda a modernidade. Sob diversas formas e com diferentes conseqüências [...]. Trata-se, pois, de uma tensão radical que, em meu entender e conforme defenderei adiante, só é susceptível de superação no caso de a relação entre a subjectividade e a cidadania ocorrer no marco da emancipação e não, como até aqui, no marco da regulação” (p. 240).

Subjetividade e cidadania no marxismo (p. 241).

“A alternativa marxista, formulada ainda no período do capitalismo liberal mas com uma eficácia que se prolonga por todo o período do capitalismo organizado e mesmo, mais matizada, até o período do capitalismo desorganizado em que nos encontramos (ou se encontram os países centrais) merece uma referência especial. [...] o período do capitalismo liberal é aquele em que se manifesta de forma brutal a liquidação do potencial emancipatório da modernidade pela via dupla da hegemonização da racionalidade técnico-científica, no seguimento da segunda revolução industrial, e da hipertrofia do princípio do mercado em detrimento do princípio do Estado e com o “esquecimento” total do princípio da comunidade rousseauiana. Mas a verdade é que é também neste período que se forjam as mais brilhantes construções emancipatórias  da modernidade [...]. É um período de contradições explosivas entre regulação e emancipação, e a expressão mais lídima de tais contradições é sem dúvida o marxismo” (p. 241).

“É conhecida a crítica de Marx à democracia liberal e portanto as idéias de subjectividade e de cidadania que a constituem. [...] É também sabido que a posição de Marx a respeito da democracia é, apesar disto, complexa, que admite a possibilidade da conquista do socialismo por via eleitoral, que salienta a eficácia das lutas democráticas do operariado inglês na redução do horário de trabalho e que, se teve algum modelo de democracia, ele foi certamente o da democracia participativa que subjaz ao princípio da comunidade rousseauiana” (p. 241).

“O que me interessa realçar é que, para criticar radicalmente a democracia liberal, Marx contrapõe ao sujeito monumental que é o Estado liberal um outro sujeito monumental, a classe operária. A classe operária é uma subjectividade colectiva, capaz de autoconsciência (a classe-para-si), que subsume em si as subjectividades individuais dos produtores directos. [...] a classe operária é em Marx a classe universal e a autoconsciência da emancipação socialista” (p. 242).

“Acontece, porém, que, do ponto de vista das relações entre as particularidades únicas das subjectividades individuais e a abstracção e universalidade das categorias da sociedade política, a eficácia subjectiva da classe operária é, ao nível da emancipação, semelhante à da cidadania liberal, ao nível da regulação. Ou seja, a subjectividade colectiva da classe tende igualmente a reduzir à equivalência e à indiferença as especificidades e as diferenças que fundam a personalidade, a autonomia e a liberdade dos sujeitos individuais. Marx reconheceu isso mesmo mas pensou que tinha a evolução histórica do capitalismo do seu lado” (p. 242).  

“Sabemos hoje que o capitalismo não proletarizou as populações nos termos previstos por Marx e que, em vez de homogeneizar globalmente os trabalhadores se alimentou das diferenças existentes ou, quando as destruiu, criou outras em seu lugar” (p. 242).

“Com Lenine e no seguimento lógico de Marx, a classe operária dá origem a um outro sujeito monumental, o partido operário. [...] a titularidade política do partido, nos termos em que foi formulada, tendeu a destruir a titularidade política individual da cidadania. Isto significa que a tensão acima referida entre subjectividade individual e cidadania foi falsamente resolvida pela destruição de ambas. [...] Não admira, pois, que o modelo marxista-leninista viesse a redundar numa hipertrofia total do princípio do Estado. [...] o marxismo, ao contrário, procurou construir a emancipação à custa da subjectividade e da cidadania e, com isso, arriscou-se a sufragar o despotismo, o que veio de fato a acontecer” (p. 242-243).

“Neste domínio, o erro de Marx foi pensar que o capitalismo, por via do desenvolvimento tecnológico das forças produtivas, possibilitaria ou mesmo tornaria necessária a transição para o socialismo. Como se veio a verificar, entregue a si próprio, o capitalismo não transita para nada senão para mais capitalismo. A equação automática entre progresso tecnológico e progresso social desradicaliza a proposta emancipadora de Marx e torna-a, de facto, perversamente gémea da regulação capitalista” (p. 243). 

A emergência da cidadania social (p. 243).

“O segundo período do capitalismo nos países centrais, o capitalismo organizado, caracteriza-se pela passagem da cidadania cívica e política para o que foi designado por “cidadania social”, isto é, a conquista de significativos direitos sociais” (p. 243).

“Segundo Marshall, na linha da tradição liberal, a cidadania é o conteúdo da pertença igualitária a uma dada comunidade política e afere-se pelos direitos e deveres que o constituem e pelas instituições que dá azo para ser social e politicamente eficaz. A cidadania não é, por isso, monolítica; é constituída por diferentes tipos de direitos e instituições; é produto de histórias sociais diferenciadas protagonizadas por grupos sociais diferentes. [...] Por último, os direitos sociais só se desenvolvem no nosso século e, com plenitude, depois da Segunda Guerra Mundial; têm como referência social as classes trabalhadoras e são aplicados através de múltiplas instituições que, no conjunto, consistem o Estado-Providência” (p. 243-244).

“Um dos principais méritos da análise de Marshall consiste na articulação que opera entre cidadania e classe social e nas consequências que dela retira para caracterizar as relações tensionais entre cidadania e capitalismo. [...] no período do capitalismo organizado, a cidadania social, porque se ancorou socialmente nos interesses das classes trabalhadoras e porque serviu estes em grande medida através de transferências de pagamentos, colidiu significativamente com o princípio do mercado, conduzindo a uma relação mais equilibrada entre o princípio do Estado e o princípio do mercado e, com ela, a uma nova estrutura da exploração capitalista, precisamente o capitalismo organizado” (p. 244).

“Este maior equilíbrio entre o Estado e mercado foi obtido por pressão do princípio da comunidade enquanto campo e lógica das lutas sociais de classe que estiveram na base da conquista dos direitos sociais. A comunidade assenta na obrigação política horizontal entre indivíduos ou grupos sociais e na solidariedade que dela decorre, uma solidariedade participativa e concreta, isto é, socialmente contextualizada” (p. 244).

“Se a classe operária não foi o sujeito monumental da emancipação pós-capitalista, foi sem dúvida o agente das transformações progressistas (emancipatórias, neste sentido) no interior do capitalismo” (p. 244).

“Para a compreensão do tempo presente é, no entanto, importante ter em conta que as lutas operárias pela cidadania social tiveram lugar no marco da democracia liberal e que por isso a obrigação política horizontal do princípio da comunidade só foi eficaz na medida em que se submeteu à obrigação política vertical entre cidadão e Estado. [...] Politicamente, este processo significou a integração política das classes trabalhadoras no Estado capitalista e, portanto, o aprofundamento da regulação em detrimento da emancipação. [...] Daí que o capitalismo se tenha transformado profundamente, para, no “fim” do processo da sua transformação, estar mais hegemónico do que nunca” (p. 245).

“Em face disto, não surpreende que neste período se tenha agravado a tensão entre subjectividade e cidadania. [...] Enfim, um modelo de desenvolvimento que transformou a subjectividade num processo de individuação e numeração burocrático e subordinou a Lebenswelt às exigências de uma razão tecnológica que converteu o sujeito em objecto de si próprio” (p. 245)

Subjectividade e cidadania em Marcuse e Foucault (p. 246)

“A relação entre a hipertrofia estatizante e consumista e o definhamento subjectividade foi denunciada pela primeira vez por Marcuse. [...] A integração política social e cultural do operariado na reprodução do capitalismo torna inviável qualquer processo de emancipação de base classista. A emancipação a conquistar é a do indivíduo e da sua subjectividade. [...] Nos termos dela, a razão tecnológica que preside ao desenvolvimento do capitalismo conduz inelutavelmente ao sacrifício da subjectividade individual na medida em que é incapaz de satisfazer todas as necessidades [...]” (p. 246).  

“Melhor que ninguém, Foucault analisou o processo histórico do desenvolvimento da cidadania em detrimento do da subjectividade, para nos permitir a conclusão de que a cidadania sem subjectividade conduz à normalização, ou seja, à forma moderna de dominação cuja eficácia reside na identificação dos sujeitos com os poderes-saberes que neles (mais do que sobre eles) são exercidos” (p. 246).

“Concordando com muito da crítica de Foucault, não partilho da radicalidade da conclusão a que ele chega. Para Foucault, não há tensão entre cidadania e sibjectividade porque a cidadania, na medida em que constitui na institucionalização das disciplinas, criou a subjectividade à sua imagem e semelhança. [...] De facto, segundo ele, o poder jurídico-político, sediado no Estado e nas instituições não tem cessado de perder importância em favor do poder disciplinar. A cidadania é, pois, para Foucault, um artefacto deste poder mais do que do conjunto dos direitos cívicos, políticos e sociais concedidos pelo Estado ou a ele conquistados” (p. 247).

“Em meu entender, o processo histórico da cidadania e o processo histórico da subjectividade são autónomos ainda que, como tenho vindo a defender intimamente relacionados” (p. 247).

“Acresce que, do ponto de vista da emancipação, é possível pensar em novas formas de cidadania (colectivas e não individuais; menos assentes em direitos e deveres do que em formas e critérios de participação) não-liberais e não-estatizantes, em que seja possível uma relação mais equilibrada com a subjectividade. Mesmo assim, estas novas formas de cidadania não nos devem fazer esquecer que o Estado ocupa posição central (porque exterior) na configuração das relações sociais de produção capitalista e que essa posição, ao contrário do que afirma Foucault, tem vindo a fortalecer-se com o desenvolvimento do capitalismo” (p. 247).

A crise da cidadania social (p. 247).

“No final dos anos sessenta, nos países centrais, o processo histórico do desenvolvimento da cidadania social sofre uma transformação cuja verdadeira dimensão só veio a revelar-se na década seguinte. Dois fenómenos marcaram essa transformação: a crise do Estado-Providência e o movimento estudantil” (p. 247).

“[...] a crise do Estado-Providência assenta basicamente na crise do regime de acumulação consolidado no pós-guerra, o “regime fordista”, como hoje é conhecido. [...] acoplada à integração maciça dos trabalhadores na sociedade de consumo através de uma certa indexação dos aumentos de salários aos ganhos de produtividade” (p. 248).

“Como referi, a classe operária, através dos sindicatos e partidos operários, teve um papel central na configuração deste compromisso, também conhecido por compromisso social-democrático para dar conta que as transformações socializantes do capitalismo neste período (o “capitalismo organizado”) foram obtidas à custa da transformação socialista da sociedade, reivindicada no início deste segundo período do capitalismo como a grande meta do movimento operário” (p. 248).

“A crise do regime fordista e das instituições sociais e políticas em que ele se traduziu assentou, em primeira linha, numa dupla crise de natureza económica-política, na crise da rentabilidade do capital perante a relação produtividade-salários e a relação salários directos-salários indirectos, e na crise da regulação nacional, que geria eficazmente até então essas relações, perante a internacionalização dos mercados e a transnacionalização da produção” (p. 248).

“Mas a crise do fordismo ou do capitalismo organizado teve também uma dimensão cultural ou política-cultural e, em meu entender, a reavaliação e a revalidação desta dimensão é de crucial importância para definir as alternativas emancipatórias dos anos noventa. [...] O compromisso social-democrático amarrou de tal modo os trabalhadores e a população em geral à obsessão e às rotinas da produção e do consumo que não deixou nenhum espaço para o exercício da autonomia e da criatividade, com as manifestações daí decorrentes [...]. A cidadania social e o seu Estado-Providência transformaram a solidariedade social numa prestação abstracta de serviços burocráticos benevolentemente repressivo [...]. Por último o compromisso social-democrático, já de si assenta numa concepção restrita (liberal) do político, acabou, apesar das aparências em sentido contrário, por reduzir ainda mais o campo político. A diferença qualitativa entre as diferentes opções política reduziu até quase à irrelevância. A representação democrática perdeu o contacto com os anseios e as necessidades da população representada e dez-se refém dos interesses corporativos dos poderosos” (p. 248-249).     

“Como sabemos, o movimento estudantil dos anos sessenta foi o grande articulador da crise político-cultural do fordismo e a presença nele, bem visível, de resto, da crítica marcusiana é a expressão da radicalidade da confrontação que protagonizava. São três as facetas principais dessa confrontação. [...] opõe ao produtivismo e ao consumismo uma ideologia antiprodutivista e pós-materialista. [...] identifica as múltiplas opressões do quotidiano, tanto ao nível de produção [...] como da reprodução social [...] e propõe-se alargar a elas o debate e a participação política. [...] declara o fim da hegemonia operária nas lutas pela emancipação social e legitima a criação de novos sujeitos sociais de base transclasista” (p. 249).

“O triunfo ideológico da subjectividade sobre a cidadania teve obviamente os seus custos. O afã na busca de novas formas de cidadania nãos hostis à subjectividade levou a negligenciar quase totalmente a única forma de cidadania historicamente constituída, a cidadania de origem liberal. Essa negligência revelou-se fatal para o movimento estudantil [...] esse desarme organizacional facilitou a expansão capilar da nova cultura política instituída pelo movimento estudantil [...]. Aliás, a herança não reside apenas na cultura política, reside também nas formas organizativas e na base social destas. A partir daí os partidos e os sindicatos tiveram de confrontar-se permanentemente com as formas organizativas dos novos movimentos sociais, tal como a parir daí o complexo marshalliano cidadania social-classe social, não mais se pode repor como anteriormente” (p. 249-250).

As duas últimas décadas: experimentação e contradição (p. 250).

“As duas últimas décadas foram [...]. Por um lado, foi um período em que o capital começou a definir uma resposta aos desafios dos anos sessenta. Trata-se de uma resposta [...] que assenta mais do que nunca na conversão do “sistema mundial” em espaço global de acumulação. O perfil geral desta resposta é conhecido, mas o seu alcance está ainda por definir. [...] Por outro lado, as duas últimas décadas foram anos de grande experimentação social, de formulação de alternativas mais ou menos radicais ao modelo de desenvolvimento económico e social do capitalismo e de afirmação política de novos sujeitos sociais, bem simbolizada nos novos movimentos sociais, sobretudo nos países centrais, e nos movimentos populares de toda a América Latina” (p. 250). 

“Por último, a última década testemunhou o colapso das sociedades comunistas do Leste Europeu [...]. [...] este processo significa, pelo menos na aparência, a revalidação do modelo capitalista do desenvolvimento ecónomico e social e a sua afirmação como o único modelo viável da modernidade” (p. 250).

As respostas do capital: difusão social da produção e isolamento político do trabalho (p. 251). 

“Os últimos vinte anos foram muito ricos em soluções capitalistas novas para responder eficazmente os desafios dos anos 60. É possível agrupar essas soluções em dois grandes conjuntos: a difusão social da produção e o isolamento político das classes trabalhadoras enquanto classes produtoras” (p. 251).

A difusão social da produção assume várias formas. É, antes de mais, a descentralização da produção através da transnacionalização da produção (a “fábrica difusa”), a fragmentação geográfica e social do processo de trabalho [...]. A despolitização das opções neste domínio – o único nacionalismo possível é o da luta pelas condições de desnacionalização da regulação económica e social – envolve também a sua naturalização, ou seja, a idéia de que as opções optam entre muito pouco, dado que os imperativos multinacionais são categóricos, pertencem à natureza própria da acumulação neste período e nenhuma economia nacional pode ter a veleidade de se furtar a ela ou ficar de fora” (p. 251).

“[...] a difusão social da produção tem ainda um terceiro aspecto, mais complexo mas talvez de maior importância no futuro próximo: a crescente confusão ou indiferenciação entre produção e reprodução” (p. 251-252).

“As lutas pela cidadania social no segundo período (capitalismo organizado) tiveram por objectivo explícito vincar que entre produção e reprodução havia uma conexão económica íntima mas que, para além dela, a desconexão era total. [...] A conexão económica residia em que a partilha nos ganhos de produtividade, os salários indirectos e o Estado-Providência deveriam garantir por si a reprodução social. [...] Esta conexão permitia aos trabalhadores planear a sua reprodução planear a sua reprodução social e a da sua família em total liberdade e segurança, sem qualquer sujeição aos ciclos económicos, ou às exigências empresariais” (p. 252).

“Embora este objectivo tenha sido obtido durante algum tempo por largos sectores das classes trabalhadoras dos países centrais, foi precisamente contra ele que se insurgiu o movimento estudantil. [...] A conexão económica, longe de criar autêntica autonomia e liberdade, criou dependência em relação ao Estado burocrático e às rotinas do consumo [...]. Nestes termos, a produção e a reprodução mantiveram-se materialmente distintas mas passaram a ser simbolicamente isomórficas” (p. 252).

“A reestruturação do capital neste período aproveitou-se, de algum modo, desta crítica para alterar, em seu favor, a relação entre produção e reprodução social. Por um lado, com os cortes no orçamento social do Estado-Providência e a quebra da indexação entre produtividade e salário, procurou eliminar ou, pelo menos, atenuar a conexão económica. Por outro lado, através da difusão social da produção, procurou aprofundar outras conexões entre produção e reprodução. [...] a generalização das formas de pluriactividades tornou mais complexa e difícil a distinção entre tempo vital e tempo de trabalho e o mesmo se sucedeu através da degradação da segurança social, que tornou mais problemática a fase pós-produtiva da vida” (p. 252-253).

“A promiscuidade entre produção e reprodução social tira razão ao argumento de Haberman (1982) e de Offe (1987) segundo o qual as sociedades capitalistas passaram a ter um paradigma de trabalho para um paradigma de interacção. [...] Tem, pois, razão Schwengel quando afirma que a sociedade contemporânea oscila entre a utopia do trabalho concreto e a experiência do “fim da sociedade do trabalho” (1988:345)” (p. 253).

“O isolamento político das classes trabalhadoras na produção está obviamente ligado aos processos que acabei de descrever e constitui, de facto, a outra fase da difusão social da produção. As várias dimensões da difusão social da produção contribuíram, cada uma a seu modo, para a transformação do operariado em mera força de trabalho. São particularmente importantes neste domínio as diferentes estratégias de flexibilização ou melhor de precarização da relação salarial que um pouco por toda parte tem vindo a ser adoptadas [...]. Todas estas formas de relação salarial visam sujeitar os ritmos da reprodução social aos ritmos da produção” (p. 253-254).

“A coexistência de várias relações salariais e a segmentação dos mercados de trabalho têm vindo a produzir uma grande fragmentação e heterogeneização do operariado, o que torna mais difícil a macro-negociação colectivas e coloca as organizações sindicais numa posição de fraqueza estrutural [...]. Para isso têm também contribuído as transformações operados do próprio processo de trabalho [...]. No seu conjunto, estas transformações retiram sentido à unidade dos trabalhadores e promovem a integração individual e individualmente negociada dos trabalhadores na empresa. Por todas estas vias, a integração cada vez mais intensa dos trabalhadores na produção corre de par com a progressiva desintegração política do movimento operário. Isolados, os trabalhadores não são classe operária, são força de trabalho. Talvez isto explique em parte a pouca resistência ou a pouca eficácia da resistência das organizações sindicais perante o processo de degradação da relação salarial” (p. 254).

“O outro aspecto não menos importante é a degradação dos salários indirectos e, consequentemente, das prestações e serviços do Estado-Providência” (p. 254).

“A difusão social da produção e o isolamento político das classes trabalhadoras nestas duas últimas décadas têm sido acompanhados no plano político-cultural por uma constelação ideológica em que se misturam o renascimento do mercado e da subjectividade como articuladores nucleares da prática social. A idéia de mercado e as que gravitam na sua órbita [...] têm desempenhado um papel decisivo na desarticulação da rigidez da relação salarial herdada no período anterior e no desmantelamento relativo do Estado-Providência. Assistimos à colonização do princípio do Estado por parte do princípio do mercado, uma colonização que envolve por vezes a introdução da concorrência entre instituições do Estado na prestação de serviços a outras instituições do Estado. [...] Trata-se de uma situação muito diferente de do período do capitalismo liberal [...]. Diferente porque, no período do capitalismo liberal, não foi necessário privatizar o sector social do Estado, [...]; diferente porque, no período do capitalismo desorganizado, o predomínio do princípio do mercado tem uma forte dimensão ideológica que ajuda a legitimar a relativa do Estado da prestação da providência social, ao mesmo tempo que oculta o fortalecimento, aparentemente contraditório, da intervenção do Estado na área económica [...]. Por último, o predomínio do princípio do mercado é agora diferente, porque, ao contrário do que se sucedeu no período do capitalismo liberal, faz apelo ao princípio da comunidade” (p. 254-255).

“Apesar de todas as diferenças, o regresso do princípio do mercado nos últimos vinte anos representa a revalidação social e política do ideário liberal e, consequentemente, a revalorização da subjectividade em detrimento da cidadania. [...] A aspiração de autonomia, criatividade e reflexividade é trasmutada em privatismo, dessocialização e narcisismo, os quais, acoplados à vertigem produtivista, servem para integrar, como nunca, os indivíduos na compulsão consumista. Tal integração, longe de significar uma cedência materialista, é vivida como expressão de um novo idealismo, um idealismo objectístico” (p. 255).

“Nessa nova configuração simbólica, a hipertrofia do princípio do mercado assinala um novo desequilíbrio entre regulação e emancipação. Desta vez, o excesso de regulação reside em que subjectividade sem cidadania conduz ao narcisismo e ao autismo” (p. 256).

Os novos movimentos sociais (p. 256).

“Defendi acima que as duas últimas décadas foram experimentais. Foram também contraditórias. O fato de até agora não se ter estabilizado nos países centrais um novo modo de regulação social em substituição do modo fordista tem levado a que as soluções experimentais, além de empíricas (o adhocismo) e instáveis (o stop and go, não só no domínio económico, como também nos domínios social e cultural), sejam contraditórias. Não admira, pois, que o excesso de regulação acabado de referir tenha convivido nos últimos vinte anos com movimentos emancipatórios poderosos, testemunhos de emergência de novos protagonistas num renovado espectro inovação e transformação sociais. [...] É assim socialmente possível viver sem duplicidade e com igual itensidade a hegemonia do mercado e a luta contra ela. A concretização dessa possibilidade depende de muitos factores. É, por exemplo, seguro dizer que a difusão social da produção contribuiu para desolcultar novas formas de opressão e que o isolamento político do movimento operário facilitou a emergência de novos sujeitos sociais e de novas práticas de mobilização social” (p. 256).

“A sociologia da década de oitenta foi dominada pela temática dos novos sujeitos sociais e dos novos movimentos sociais (NMSs)” (p. 256).

“Interessa apenas referi-lo brevemente na medida em que intersecta os dois pólos estruturantes do presente texto: a relação entre regulação e emancipação e a relação entre subjectividade e cidadania” (p. 257)

“A identificação da intersecção dos novos movimentos sociais nesta dupla relação é tarefa difícil, quanto mais não seja porque é grande a diversidade destes movimentos e é debatível se essa diversidade pode ser reconduzível a um conceito ou a uma teoria sociológica únicos. [...] Se nos países centrais a enumeração dos novos movimentos sociais inclui tipicamente os movimentos ecológicos, feministas, pacifistas, antiracista, de consumidores, e de auto-ajuda a enumeração na América Latina [...] é bastante mais heterogéna. Tendo em vista o caso brasileiro, Scherer-Warren e Krischke destacam a “parcela dos movimentos sociais urbanos propriamente ditos, os CEBs (Comunidade Eclesiais de Base organizadas a partir dos adeptos da Igreja Católica), o novo sindicalismo urbano e, mais recentemente, também rural, o movimento feminista, o movimento ecológico, o movimento pacifista em fase de organização, sectores de movimentos de jovens e outros” (Scherer-Warren e Krischke, 1987:41)” (p. 257).

“[...] Por agora, servem-nos para identificar alguns dos factores novos que os movimentos sociais das duas últimas décadas vieram introduzir na relação regulação-emancipação e na relação subjectividade-cidadania e para mostrar que esses factores não estão presentes do mesmo modo em todos os NMSs em todas as regiões do globo” (p. 258).

“A novidade maior dos NMSs reside em que constituem tanto uma crítica da regulação social capitalista, como uma crítica da emancipação social socialista tal como ela foi defendida pelo marxismo. [...] os NMSs denunciam, com uma radicalidade sem precedentes, os excessos de regulação da modernidade” (p. 258).

“Nestes termos, as denúncias de novas formas de opressão implica da denúncia das teorias e dos movimentos emancipatórios que as passaram em claro, que as negligenciaram, quando não pactuaram mesmo com elas. Implica, pois, a crítica do marxismo e do movimento operário tradicional, bem como factor de emancipação (o bem-estar material, o desenvolvimento tecnológico das forças produtivas) transforma-se nos NMSs em factor de regulação. [...] a emancipação por que se luta visa transformar o quotidiano das vítimas da opressão aqui e agora e não num futuro longínquo. A emancipação ou começa hoje ou não começa nunca” (p. 258-259).

“[...] A globalização ao nível da regulação é tornada possível pela crescente promiscuidade entre produção e reprodução social atrás analisada. Se o tempo vital e o tempo de trabalho produtivo se confundem cada vez mais, as relações sociais da produção descaracterizam-se enquanto campo privilegiado de dominação e hierarquização social e o relativo vazio simbólico assim criado é preenchido pelas relações sociais de reprodução social (na família e nos espaços públicos) e pelas relações sociais na produção” (p. 259).             
  
“Qualquer destes dois últimos tipos de relações sociais tem vindo a adquirir crescente visibilidade social nos últimos vinte anos. Mas, contraditoriamente, esse processo de viabilização social só é possível ancorado da lógica (que não na forma) e na historicidade da dominação própria da relação das relações de produção. Ou seja, a difusão social da produção, ao mesmo tempo que conduz ao desprivilegiamento relativo da forma de dominação especifica das relações de produção [...], possibilita que a lógica desta [...] se difunda socialmente em todos os setores da vida social e, por esta via, se globalize” (p. 259).

“O processo de globalização no campo da regulação é também um processo de lcalização. [...] Daí que o quotidiano – que é, por excelência, o mundo da intersubjectividade – seja, a dimensão espácio-temporal da vivência dos excessos de regulação e das opressões concretas em que eles se desdobram” (p. 260).

“Ao nível da emancipação, ocorre também um fenómeno correspondente de globalização-localização. [...] Porque os momentos são “locais” de tempo e de espaço, a fixação momentânea da globalidade da luta é também uma fixação localizada e é por isso que o quotidiano deixa de ser uma fase menor ou um hábito descartável para passar a ser o campo privilegiado de luta por um mundo e uma vida melhores. Perante a transformação do quotidiano numa rede de sínteses momentâneas e localizadas de determinações globais e maximalistas, o senso comum e o senso dia-a-dia vulgar, tanto público como privado, tanto produtivo como reprodutivo, desvulgarizam-se e passam a ser oportunidades únicas de investimento e protagonismo pessoal e grupal. Daí a nova relação entre subjectividade e cidadania” (p. 260-261).  

Subjectividade e cidadania nos novos movimentos sociais (p. 261).

“Um dos mais acesos debates sobre os NMSs incide no impacto na relação subjectividade-cidadania. Segundo, uns, os NMSs representam a afirmação da subjectividade perante a cidadania. A emancipação por que lutam não é política mas antes pessoal, social e cultural. As lutas em que se traduzem pautam-se por formas organizativas (democracia participativa) diferentes das que presidiram às lutas pela cidadania (democracia representativa). Os protagonistas dessas lutas [...] são grupos sociais, ora maiores, ora menores que classes, com contornos  mais ou menos definidos em vista de interesses coletivos por vezes muito localizados mas potencialmente universalizáveis. As formas de opressão e de exclusão contra as quais lutam não podem, em geral, ser abolidas com a mera concessão de direitos, como é típico da cidadania [...] Por último, os NMSs ocorrem no marco da sociedade civil e não no marco do Estado e em relação ao Estado mantêm uma distância calculada, simétrica da que mantêm  em relação aos partidos e aos sindicatos tradicionais ” (p. 261).

“Esta concepção, que faz assentar a novidade dos movimentos sociais na afirmação da subjectividade sobre a cidadania, tem sido amplamente criticada. A crítica mais frontal provém daqueles que contestam precisamente a novidade dos NMSs” (p. 262).

“Em minha opinião, não é preciso recusar a novidade dos NMSs para criticar as ilações que dela retira a primeira concepção. A novidade dos NMSs tanto no domínio da ideologia como no das formas organizativas, parece-me evidente, ainda que não deva ser defendida em termos absolutos. Tal como Scott (1990), duvido que os NMSs possam na sua totalidade ser explicados por uma teoria unitária. Basta ter em mente as diferenças significativas em termos de objectivos de ideologia e de base social entre os NMSs dos países centrais e os da América Latina” (p. 262).

“A novidade dos NMSs não reside na recusa da política mas, ao contrário, no alargamento da política para além do marco liberal da distinção entre Estado e sociedade civil. Os NMSs partem do pressuposto de que as contradições e as oscilações periódicas entre o princípio do Estado e o princípio do mercado são mais aparentes do que reais, na medida em que o trânsito histórico do capitalismo é feito de uma interpretação sempre crescente entre os dois princípios [...]” (p. 263).

“Apesar de estar muito colonizado pelo princípio do Estado e pelo princípio do mercado, o princípio da comunidade rousseauina é o que tem mais virtualidades para fundar as novas energias emancipatórias. A idéia de obrigação política horizontal, entre cidadãos, e a idéia da participação e da solidariedade concretas na formulação da vontade geral são as únicas suscetíveis de fundar uma nova cultura política e, em última instância, uma nova qualidade de vida pessoal e colectiva assentes na autonomia e no autogoverno, na descentralização e na democracia participativa, no cooperativismo e na produção socialmente útil. [...] Sem postergar as conquistas da cidadania social, como pretende afinal o liberalismo político-económico, é possível pensar r organizar novos exercícios de cidadania – porque as conquistas da cidadania civil, política e social não são irreversíveis e estão longe de ser plenas – e novas formas de cidadania – colectivas e não meramente individuais; assentes em formas político-jurídicas que, ao contráriodos direitos gerias e abstratos, incentivem a autonomia e combatam a dependência burocrática, personalizem e localizem as competências interpessoais e colectivas em vez de as sujeitar a padrões abstractos” (p. 263-264).

“[...] Dialecticamente, esta novidade nas estruturas organizativas e no estilo de acção política é o elo que liga os NMSs aos velhos movimentos sociais. Através dela continuam a aprofundar a luta pela cidadania, não sendo por isso correcto justificar com ela um pretenso desinteresse pelas questões da cidadania nos NMSs” (p. 264).

“Não enjeito uma certa normatividade nesta análise e, num campo de opções em aberto, a preferência pela opção mais optimista ou promissora. São conhecidas as limitações das NMSs e começa hoje a ser comum afirmar-se que o seu momento de apogeu já passou. E debatível se a relação tensa ou de distancia calculada entre a democracia representativa e os NMSs tem sido benéfica ou prejudicial para estes últimos” (p. 264).

“Dada a grande diversidade dos NMSs, é impossível falar de um padrão único de relações entre democracia representativa (quando esta existe, pois, na América Latina a luta dos NMSs tem sido muitas vezes por ela) e a democracia participativa. O facto de essas relações, quaisquer que sejam, serem sempre caracterizadas pela tensão e pela convivência difícil entre as duas formas de democracia não me parece em si mesmo negativo, uma vez que é dessa tensão que se têm libertado muitas vezes as energias emancipatórias necessárias à ampliação e redefinição do campo político” (p. 265).

Os NMSs e o sistema mundial: Brasil, África e Portugal (p. 265).

“Estas transformações ocorrem desigualmente no sistema mundial, pelo que a identidade dos NMSs não pode deixar de ser parcial. Se nos países centrais combinam democracia participativa e valores ou reivindicações pós-materialistas, na América Latina combinam, na maioria das situações, democracia participativa com valores ou reivindicações de necessidades básicas. Tão importante quanto a análise as identidade parcial dos NMSs é a análise da desigualdade da sua ocorrência de país para pais e a diversidade entre elas dentro de cada país” (p. 265).

“Do que não restam dúvidas, porém, é que os NMSs, nos países onde ocorreram com mais intensidade, significaram uma ruptura com as formas organizativas e os estilos políticos hegemónicos e o seu impacto na cultura e na agenda política desses países transcende em muito as vicissitudes de trajectórias dos movimentos em si mesmo. O impacto residiu especificamente numa tentativa de inverter o trânsito da modernidade para a regulação e para o excesso de regulação, como esquecimento essencial da emancipação, ao ponto de fazer passar pó emancipação o que não era, afinal, senão regulação sob outra forma. A emancipação pôde, assim, regressar aos dizeres e fazeres da intersubjectividade, da socialização, da inculcação cultural e da prática política. O impacto residiu também numa tentativa de procurar um novo equilíbrio entre subjectividadee cidadania. Se na aparência alguns NMSs se afirmaram contra a cidadania, foi em nome de uma cidadania de nível superior capaz de compatibilizar o desenvolvimento pessoal com o clectivo e fazer a da “sociedade civil” uma sociedade política onde o Estado seja um autor privilegiado mas não o único. Por todas estas razões, os NMSs não podem deixar de ser uma referência central quando se trata de imaginar os caminhos da subjectividade, da cidadania e da emancipação nos anos noventa” (p. 268-269).                  

Os anos noventa

O Autor observa que é natural que os anos noventa tragam o aprofundamento, após os experimentos das duas décadas anteriores, a menos que as futuras sociedades façam da instabilidade das novas experiências a única forma viável de estabilidade.

“É também possível pensar, como quer algum pós-mordenismo, que o que houve de novo nestes últimos vinte anos não cessará de se repetir, como novo, nos anos vindouros, não nos restando outra atitude senão perder o hábito de imaginar outras possibilidades para além do que existe e celebrar o que existe como sendo o conjunto de todas as possibilidades imagináveis” (p. 269).

Esta teoria se apresenta como indeterminista com relação ao presente e determinista com relação ao futuro, porém não nos impede de imaginarmos outras teorias que comportema diferença do futuro e a diferença atual em relação a ele.

“Se fosse correcto falar de “patologias da modernidade”, diríamos que elas consistiram até agora em subsínteses entre subjectividade, cidadania e emancipação que resultaram em excessos de regulação, os quais, aliás, se insinuaram por vezes sob a forma de emancipações, posteriormente denunciadas como falsas” (p. 269).

Os excessos de regulação são concebidos pelo Autor como constelações sócio-políticas que se mantiveram aquém de uma síntese alcançada entre subjetividade, cidadania e emancipação, conferindo-lhe uma versão desfigurada, truncada e perversa.

“[...] a tarefa da teoria crítica pós-moderna consiste em apontar de novo os caminhos da síntese [...] O esforço teórico a empreender deve incluir uma nova teoria da democracia que permita reconstruir o conceito de cidadania, uma nova teoria da subjectividade que permita reconstruir o conceito de sujeito e uma nova teoria da emancipação que não mais que o efeito teórico das duas primeiras teorias na transformação da prática social levada a cabo pelo campo social da emancipação” (p. 270).

Para uma nova teoria da democracia

Segundo o Autor, o capitalismo não é suficientemente democrático. Quando o princípio do Estado e o princípio do mercado se encontram na democracia representativa, muito embora esta concedida pelas classes dominantes, ela se apresenta como conquista das classes proletárias.

 “A democracia representativa é, pois, uma positividade e como tal deve ser apropriada pelo campo social da emancipação” (p. 270).

“A complementação ou o aprofundamento da democracia representativa através de outras formas mais complexas de democracia pode conduzir à elasticização e aumento do máximo de consciência possível, caso em que o capitalismo encontrará um modo de convivência com a nova configuração democrática, ou pode conduzir, perante rigidificação desse máximo, a uma ruptura ou, melhor, a uma sucessão histórica de micro-rupturas que apontem para uma ordem social pós-capitalista. [...] É esta indeterminação que faz o futuro ser futuro” (p. 270).

A renovação da teoria democrática, afirma o Autor, implica numa articulação entre democracia representativa e democracia participativa e, para que se realize tal articulação, necessária se faz radical ampliação e redefinição do campo político.

“A nova teoria democrática deverá proceder à repolitização global da prática social e o campo político imenso que daí resultará permitirá desocultar formas novas de opressão e de dominação, ao mesmo tempo que criará novas oportunidades para o exercício de novas formas de democracia e de cidadania.” (p. 271).

O Autor distingue quatro espaços políticos estruturais. São eles: o espaço da cidadania (o espaço político segundo a teoria liberal), o espaço doméstico, o espaço da produção e o espaço mundial, dos quais todos configuram relações de poder, onde cada um deles é um espaço político específico adequado a transformar as relações de poder, de tal espaço, em relações de autoridade partilhada.

“O espaço doméstico continua a ser o espaço privilegiado de produção social e a forma de poder que nele domina é o patriarcado. [...] Obviamente, a discriminação sexual não se limita ao espaço doméstico nem é sempre resultado do exercício do poder patriarcal; mas este como que estabelece a matriz a partir da qual outras formas de poder são socialmente legitimadas para produzir discriminação sexual” (p. 271).

“Apesar de debatível é, no entanto, altamente improvável que o máximo de consciência possível do capitalismo possa vir a integrar o fim da discriminação sexual. Em qualquer caso, a politização do espaço doméstico – e, portanto, o movimento feminista – é um componente fundamental da nova teoria da democracia.” (p. 272).
                                                                                                                 
“O espaço da produção é o espaço das relações sociais de produção e a forma de poder que lhe é própria é a exploração (extracção de mais valia)” (p. 272).

O Autor argumenta no sentido de que o isolamento político do operariado e a difusão social da produção, somados ao desvio de atenção analítica dos cientistas sociais, contribuíram para tornar menos importante o quotidiano do trabalho assalariado.

“Por esta razão, o espaço da produção perdeu protagonismo social e cultural e os sujeitos sociais nele constituídos, sobretudo o operariado, peso político [...] A articulação entre o isolamento político do operariado e a difusão social da força de trabalho assalariada é responsável pela situação paradoxal de a força de trabalho assalariada ser cada vez mais crucial para explicar a sociedade contemporânea e o operariado ser cada vez menos importante e menos capaz de organizar a transformação não-capitalista desta” (p.272).

Segundo o Autor, o movimento operário obteve conquistas importantes, no entanto, foram obtidas as expensas da total separação entre o espaço da cidadania e o espaço da cidadania e o espaço da produção.

“A negociação sindical e a representação política do movimento operário, que foram tão importantes para melhorar as condições de vida dos trabalhadores, foram também, decisivas para naturalizar, trivializar e, em suma, despolitizar as relações de produção” (p. 273).

“Nestas condições uma das tarefas centrais da nova teoria democrática consiste na politização do espaço da produção” (p. 273).

O Autor defende que a fábrica é um micro-Estado onde se detectam instituições isomórficas do campo político liberal, e, recentemente tem evoluído na direção de descaracterizar e heterogeneizar cada vez mais as relações de produção.
“Esta heterogeneidade das relações sociais de produção, que, obviamente, sempre existiu mas é hoje mais descaracterizadora do que nunca, torna a relação social entre capital e trabalho menos específica e a relação entre lucros e salários menos definida. A mais-valia econômica é cada vez mais tão-só um dos componentes de uma relação de poder onde se misturam, para além dela, mais-valias étnicas, sexuais, culturais e políticas” (p. 273).

O Autor complementa, que embora crescente a ineficácia e desatualização do movimento operariado, esta situação oportuniza cidadanizar o espaço da produção. A politização do espaço da produção é multidimensional e envolve primeiramente a relação capital-trabalho e, em segundo plano, a politização do espaço da produção envolve as relações na produção.

“O que distingue as mais-valias étnicas, sexuais, culturais e políticas é que elas, ao contrário da mais-valia económica, podem existir nas relações entre trabalhadores [...] As relações de poder entre trabalhadores na produção podem violentar o quotidiano do trabalho assalariado tanto ou mais que a relação entre capital e trabalho. A ocultação desta forma de poder em nome de míticas solidariedades constitui um acto de despolitização e de desarme político” (p.274).

A politização do espaço da produção envolve, em terceiro lugar, os processos de trabalho e de produção e a das chamadas matérias-primas.

“A politização da tecnologia não é possível sem a das chamadas matérias-primas, ou seja, sem a politização da relação natureza-sociedade no espaço da produção [...] A politização da natureza envolve a extensão a esta do conceito de cidadania, o que significa uma transformação radical da ética política da responsabilidade liberal, assente na reciprocidade entre direitos e deveres” (p. 274 e 275).

“O espaço mundial é o conjunto dos impactos em cada formação social concreta decorrentes da posição que ela ocupa no sistema mundial [...] As relações de troca de desigual entre países centrais, periféricos e semiperiféricos sempre tiveram uma forte dimensão política, como os atestam as guerras, o direito internacional público e as organizações políticas internacionais” (p. 275).

“As empresas multinacionais são os grandes veículos da cultura-ideologia do consumismo e têm desempenhado um papel crucial em aumentar expectativas consumistas que não podem ser satisfeitas, num futuro previsível, pela massa da população do chamado Terceiro Mundo” (p. 275 e 276).

Conforme o Autor, a politização das praticas transnacionais é ponto crucial para a transformações das mencionadas relações de poder em relações de autoridade partilhada.

“A nova teoria da democracia – que também poderíamos designar por teoria democrática liberal – tem, pois, por objectivo alargar e aprofundar o campo político em todos os espaços estruturais da interação social [...] E as transformações prolongam-se no conceito de cidadania, no sentido de eliminar os novos mecanismos de exclusão da cidadania, de combinar formas individuais com formas colectivas de cidadania e, finalmente, no sentido de ampliar esse conceito para além do princípio da reciprocidade e simetria entre direitos e deveres” (p. 276).

Para uma nova teoria da emancipação

“A nova teoria da emancipação parte da ideia de que – do ponto de vista do político, alargado e aprofundado pela nova teoria democrática – os anos sessenta apenas começaram e continuarão a ser uma referência central nos anos noventa [...] os movimentos sociais dos anos sessenta tentaram pela primeira vez combater os excessos de regulação da modernidade através de uma nova equação entre subjetividade, cidadania e emancipação” (p. 276).

“Uma tal concepção da emancipação implica a criação de um novo senso comum político [...] A nova cidadania tanto se constitui na obrigação política vertical entre os cidadãos e o Estado, como na obrigação política horizontal entre cidadãos [...] Com isto, revaloriza-se o princípio da comunidade e, com ele, a ideia de autonomia e a ideia de solidariedade [...] sem dispensar o Estado das prestações sociais a que o obriga a reivindicação da cidadania social, sabe abrir caminhos próprios de emancipação e não se resigna à tarefa de colmatar as lacunas do Estado e, deste modo, participar, de forma benévola, na ocultação da opressão e do excesso de regulação” (p. 278).

Capítulo 10

O Norte o Sul e a Utopia (p. 281)

“Em 1841, Charles Fourier, o grande pensador da utopia, invectivava os cientistas sociais – que ele designava como ‘os filósofos das ciências incertas’ – por sistematicamente se esquecerem dos problemas fundamentais das ciências que ocupam.” (p. 281)

“Será que as ciências sociais estão hoje mais bem equiparadas para não esquecerem dos problemas fundamentais ou, pelo contrário continuam a esquecê-los sistematicamente? Será que são hoje menos ou mais incertas que o eram há cento e cinquenta anos?” (p. 281-282)

“O que são problemas fundamentais? Como se pode ver pelo exemplos dados por Fourier, são problemas que estão na raiz de nossa instituições e das nossas práticas, modos profundamente arreigados de estruturação e de ações sociais considerados por alguns como fontes de contradições, antinomias, incoerências, injustiças que se repercutem com intensidade variável nos mais diversos sectores da vida social” (p. 282-283)

“É notório que a ciência moderna em geral e as ciências sociais em particular atravessam hoje uma profunda crise de confiança epistemológica.” (p. 283)

“Desta convergência entre dinâmicas epistemológicas e societais resulta não só a maior visibilidade dos problemas fundamentais, como maior urgência no encontrar soluções para eles. É por esta razão que alguns, entre os quais me incluo, entendem que estamos a entrar num período de transição paradigmática, tanto  no plano epistemológico – como no plano societal – da sociedade capitalista para outra forma societal que pode ser melhor como pior.” (p. 283)

“[...]me proponho a analisar de seguida alguns dos vectores dos problemas que, na minha opinião, são já hoje fundamentais e sê-lo-ão, e muito mais, nas próximas décadas para, na última parte, traçar o mapa do terreno onde podem ser queridas e buscadas algumas alternativas emancipatórias em nada envergonhadas ou ofendidas por serem ditas utópicas.” (p. 284)

Os problemas fundamentais nos diferentes espaços-tempo (p. 284)

O espaço-tempo mundial (p. 284)

“O problema fundamental do espaço-tempo mundial é a crescente e presumivelmente irreversível polarização entre o Norte e o Sul, entre países centrais e países periféricos no sistema mundial. Este problema comporta uma grande pluralidade de vectores. Salientarei apenas três deles: a explosão demográfica, a globalização da economia e a degradação ambiental.” (p. 286)

A explosão demográfica (p. 286)

“Em primeiro lugar, o vector da explosão demográfica. Entre 1825 e 1925 a população mundial duplicou de 1 bilião de pessoas para dois biliões. Nos cinquenta anos seguintes voltou a duplicar para 4 biliões e entre 1975 e 1990 passou de 4 biliões para 5,3 biliões de pessoas. A projecção para as próximas décadas variam, mas, a fazer jus a uma projecção moderada, em 2025 a população mundial será de 8,5 biliões de pessoas” (p. 286-287)

“A explosão demográfica torna-se um problema quando produz um desequilíbrio entre a população e os recursos naturais e sociais para sustentar adequadamente, e é um problema tanto mais sério quanto mais grave for esse desequilíbrio.” (p. 287)

A globalização da economia (p. 289)

“Isto me conduz ao segundo vector da desigualdade Norte/Sul no espaço-tempo muldial: a globalização da economia. Mesmo admitindo que existe uma economia-mundo desde o século XVI, é inegável que os processos de globalização se intensificaram enormemente nas últimas décadas.” (p. 289)

“Dos traços desta evolução sobretudo nas últimas duas décadas selecciono os mais importantes para a minha tese. O primeiro traço é a deslocação da produção mundial para a Ásia consolidando-se esta como uma das grandes regiões do sistema mundial, constutuída, como todas as outras regiões, por um centro (o Japão), uma semiperiferia (os novos países industriais: a Coréia do Sul, Taiwan, Hong Kinge Singapura) e uma periferia (o resto da Ásia).” (p. 289)

“O segundo traço da globalização da economia é a primazia total das empresas multinacionais, enquanto agentes do ‘mercado global’.” (p. 290)

“Concomitante com a primazia das multinacionais, dois outros traços de globalização da economia devem ser mencionados pela importância que têm para a polarização da desigualdade entre o Norte e o Sul. O primeiro é a erosão da eficácia do Estado na gestão macro-económica.” (p.290)

“O outro traço da globalização da economia fortemente vinculado à proeminência das multinacionais e o avanço tecnológico das últimas décadas quer na agricultura com a biotecnologia, quer na indústria com a robótica, a automação e também a biotecnologia.” (p. 291)

“Em 1988, s 280.000 robots industriais existentes no mundo, 257.000 estavam concentrados no Japão, na Europa ocidental e nos EUA. Mas o mais notável é que, desses, o Japão detinha 176.000, ou seja, mais do dobro da soma dos robots da Europa e dos EUA, cerca de 70% da população mundial de robots industriais (Kennedy, 1993: 88).” (p. 291)

[...] o aspecto mais saliente da biotecnologia agrícola do ponto de vista das relações Norte/Sul é que ela certamente agravará tanto a sobreprodução do Norte como a subprodução do Sul.” (p. 292)

“Perante isto não admira que o cisma global entre os ricos e os pobres se tenha aprofundado. Calcula-se que 1 bilião de pessoas – mais de 14 da população mundial – viva em pobreza absoluta, ou seja, dispondo de um rendimento inferior a cerca de 365 dólares por ano. Do outro lado do abismo, 15% da população mundial produziu e consumiu 70% do rendimento mundial.” (p. 293)

“Para além dos poucos países do Sul que nesta década conseguiram beneficiar das tranformações da economia mundial, a esmagadora maioria perdeu, e uma parte dela atingiu uma situação de colapso de que se manifesta de múltiplas formas” (p. 293)

“Como já aconteceu no passado noutras circunstâncias, não é absurdo pensar que os agricultores do Terceiro Mundo venham a fornecer às empresas de biotecnologia recursos genéticos a partir dos quais estas produzam bio-produtos a que os agricultores do Terceiro Mundo só terão acesso se tiverem recursos para pagar os elevados preços que elas cobrarão por eles.” (p. 295)

A degradação ambiental (p. 296)

“De todos os problemas enfrentados pelo sistema mundial, a degradação ambiental é talvez o mais intrinsecamente transnacional, e, portanto, aquele que, consoante o modo como for enfrentado, tanto pode redundar num conflito global entre o Norte e o Sul, como pode ser a plataforma para um execício de solidariedade transnacional e intergeracional.” (p. 296)

“[...] o Norte não parece disposto a abandonar os seus hábitos poluidores e muito menos a contribuir, na medida de seus recursos e responsabilidades, para uma mudança dos hábitos poluidores do Sul, que são mais uma questão de necessidade que uma questão de opção.” (p. 296)

“Os países do Norte ‘especializaram-se’ na poluição industrial e em tempos mais recentes têm conseguido exportar parte dessa poluição para os países do Sul, quer sob a forma de venda de lixo tóxico, quer por transferência de algumas das indústrias mais poluentes por ser aí menos a consciência ecológica e serem menos eficazes  (se de todo existentes) os controles antipoluição.” (p. 297)

“[...] a gravidade do problema ambiental reside antes de mais no modo como afectará as próximas gerações.” (p. 298)

“[...] os problemas mais sérios com que se confronta o sistema mundial são globais e como tal exigem soluções globais” (p. 299)

O espaço-tempo doméstico (p. 301)

“O espaço-tempo doméstico é o espaço-tempo das relações familiares, nomeadamente entre cônjuges e entre pais e filhos. As relações sociais familiares estão dominadas por uma forma de poder, o patriarcado, que está na origem da discriminação sexual de que são vítimas as mulheres.” (p. 301)

“Um pouco por toda a parte a mulher tem a seu cargo, para além da reprodução biológica, a preparação dos alimentos, as compras para o consumo doméstico e o trabalho de organização e de execução que permite a reprodução funcional da unidade familiar.” (p. 302)

“A articulação das relações sociais do espaço-tempo doméstico com o espaço-tempo mundial é complexa.” (p. 302)

“Por exemplo, as estatísticas das Nações Unidas mostram que, salvo algumas excepções, a taxa de fertilidade está intimamente relacionada com o nível educacional das mulheres, baixando à medida que este aumenta. Assim, segundo o World Resources Institute, a das mulheres analfabetas em Portugal é de 3,5 enquanto a das mulheres com sete ou mais anos de escolaridade é de 1.8 (World Resources, 1990:226).” (p. 302)

“[...] crescente emprego da mulher no sector industrial com os efeitos do investimento multinacional no trabalho das melheres, com a forte participação do trabalho feminino no sector desregulamentado ou informal da economia e, finalmente, com a intensificação do trabalho doméstico” (p. 303)

“Mais importante ainda é o fato de as mulheres serem sistematicamente vítimas de discriminação salarial, sendo-lhes na prática negada a fruição do princípio do salário igual para trabalho igual consagrado na legislação da maior parte dos países.” (p. 304)

“Hoje em dia as novas tecnologias da informação, da comunicação, da automação estão a actuar no sentido de superar esta distinção e fazer de novo convergir na família as funções de produção e de reprodução.” (p. 305)

“No Norte, trata-se sobretudo de trabalhadores altamente qualificados que, munidos do seu computador pessoal integrado em múltiplas redes, fazem em casa e com relativa autonomia o trabalho que antes os fazia deslocar-se a empresa, perder horas nos congestionamentos de transito e trabalhar segundo horários mecânicos e estandardizados. No Sul o trabalho em casa é quase sempre feito por mulheres e crianças; é o trabalho realizado à peça em geral nas indústrias trabalho-intensivas  do sector têxtil e do calçado.” (p. 305)

O espaço-tempo da produção (p. 306)

“O espaço-tempo da produção é o espaço-tempo das relações sociais através das quais se produzem bens e serviços que satisfazem as necessidades como tal elas se manifestam no mercado enquanto procura efectiva. Caracteriza-se por uma dupla desigualdade de poder: entre capitalistas e trabalhadores, por um lado, e entre ambos e a natureza, por outro.” (p. 306)

“A importância do espaço-tempo da produção reside em que nele se gera a divisão de classes que juntamente com a divisão sexual e a divisão étnica constitui um dos grande factores de desigualdade social e de conflito social.” (p. 306)

“Sem dúvidas que a globalização da economia representou maior prosperidade para alguns países, mas só manteve intactas, se não mesmo agravou, as assimetrias globais no sistema mundial, como agravou claramente as desigualdades sociais, tanto nos países do centro, como nos países do Sul” (p. 308)

“[...] a centralidade do trabalho e da produção, ao invés de diminuir, tem de facto aumentado. E a razão para isto reside na crescente mercadorização da satisfação das necessidades e na cultura que lhe está associada e a legítima – o consumismo.” (p. 309)

“[...] o operariado deixou de ser uma força privilegiada de transformação social.” (p. 310)

“[...] o que é preciso compreender ou explicar por que é que esta centralidade nas práticas sociais dominantes não se traduz em capacidade colectiva para transformar. Este é, pra mim, um dos problemas fundamentais com que se confronta o espaço-tempo da produção.” (p. 310)

“[...] quanto mais fácil é ao capital organizar transnacionalmente o trabalho a seu favor, mais difícil é ao trabalho organizar-se transnacionalmente contra o capital” (p. 311)

“O espaço-tempo da produção compreende ainda, como uma dimensão relativamente autônoma, o núcleo das relações sociais de troca mercantil. Abrange, portanto, as relações de consumo.” (p. 311)

“[...] a satisfação das necessidades por via do mercado se transforma em uma dependência em relação a necessidades que só existem como antecipação do consumo mercantil e que, como tal, são a um tempo plenamente satisfeitas por este e infinitamente recriadas por ele” (p. 312)

“O aumento da pobreza e da permanência de formas de substistência tradicional revelam que uma larga maioria da população mundial tem ainda muito pouco contacto com o consumo mercadorizado e que, portanto, a maior parte da produção multinacional nos países periféricos não se destina obviamente ao mercado interno.” (p. 312)

“[...] de todas as disparidades entre o Norte e o Sul, as disparidades no consumo são, sem dúvidas, as mais evidentes” (p. 313)

O espaço-tempo da cidadania

“Mas se no plano interno o Estado está a ser cada vez mais confrontado com forças subestatais, no plano internacional confronta-se com as forças supra-estatais que já acima assinalei ao falar nas transformações do espaço-tempo mundial. A erosão da soberania de que tanto hoje se fala não é de facto um fenômeno novo. Ao contrário, tem caracterizado desde sempre a experiência dos Estados periféricos e semiperiféricos nas suas interacções com Estados centrais. O que é novo é o facto de essa erosão e de essa permeabilidade da soberania estar hoje a ocorrer nos Estados centrais”. (p. 315)

“Este processo de erosão da soberania, que faz desta menos um valor absoluto do que um título negociável, apesar de ocorrer globalmente, não elimina, e, pelo contrário, agrava as disparidades e as hierarquias no sistema mundial. Como referi acima, este facto torna urgente uma nova ordem transnacional adaptada a novas condições, a qual, no entanto, parece estar a ser bloqueada precisamente pelas condições que a tornam urgente: a erosão da soberania do Estado e a perda da centralidade do Estado em face de forças subestatais e supra-estatais”. (p. 315)

“O racionalismo iluminista, em conexão com o capitalismo liberal e individualista, por um lado, e o Estado moderno, democrático, por outro, paracem capazes de destronar para sempre, tanto na Europa, como no mundo por ela colonizado, as identidades ditas tradicionais, retrógradas, primitivas que sustentavam tais relações, e o Estado foi o dispositivo, privilegiado para levar a cabo essa tarefa. Enquanto Estado nacional, assente num privilégio de cidadania, criava uma nova comunidade, a comunidade nacional, que substituiria a comunidade étnica; enquanto Estado secular, assente num princípio de separação entre a igreja e o Estado, criava uma cultura pública específica, o secularismo, que a prazo tornaria a identidade religiosa obsoleta. A verdade é que nas últimas décadas este projeto modernista foi posto drasticamente em causa, quando, para surpresa de muitos, as identidades e as lealdades primordiais da etnia e da religião ganharam nova força, ao mesmo tempo que o carácter nacional do Estado e o secularismo entravam em crise”. (p. 316)    

“A crise do Estado e das ideologias desenvolvimentista abre neste domínio uma caixa de pandora donde podem sair, lado a lado, e às vezes misturados, o racismo, o chauvinismo étnico e mesmo o etnocídio, por um lado, e a criatividade cultural, a autodeterminação, a tolerância pela diferença e a solidariedade, por outro. A dificuldade dilemática neste domínio reside precisamente em que à partida é difícil prever qual destes processos prevalecerá ou se quer se qualquer deles pode em dadas circunstâncias transmutar-se no outro”. (p. 317)

“A partir da Revolução Francesa, o Estado moderno assumiu gradualmente muitas das tarefas e posiçõpes sociais que eram antes ocupadas pela Igreja, um processo que se designou em geral por secularização e que, pelo seus papel crucial, passou a ser considerado como um dos traços principais da modernidade”. (p. 317)

“Na periferia do sistema mundial, o revivalismo fundamentalista, sobretudo do fundamentalismo islâmico, deve ser visto em geral como uma resposta ao fracasso do nacionalismo e do socialismo, e como uma alternativa que, ao contrário do que sucedeu com estes dois últimos, não assenta na imitação do ocidente e na rendição do imperialismo cultural deste, e antes se baseia na possibilidade de um projeto social, político e cultural autônomo”. (p. 318)

“Tal como sucede com as identidades e lealdades étnicas e, como vimos, muitas vezes interpenetradas por elas, as identidades e lealdades religiosas constituem uma caixa de Pandora de que podem jorrar tanto energia destrutivas, como energias construtivas. O dilema reside em que a crítica radical que, sobretudo os países periféricos dirigem às promessas da modernidade e do capitalismo eurocêntricos, ocorre num momento de crise profunda do paradigma da modernidade e, portanto, num momento em que se começa a reconhecer que essas promessas tão-pouco foram cumpridas nos países centrais e tão-pouco podem vir a sê-lo dentro deste paradigma”. (p. 319).

As dificuldades fundamentais

“Emergiram ou agravaram-se nas duas últimas décadas uma série de problemas transnacionais, alguns transnacionais por natureza e outros transnacionais pela natureza do seu impacto. São os problemas da degradação ambiental, do aumento da população e do agravamento das disparidades de bem-estar entre o centro e a periferia, tanto ao nível do sistema mundial, como ao nível de cada um dos Estados que o compõem”. (p. 319)

“No plano interno, parece que essa crise se vai traduzir nos próximos anos no aumento das convulsões sociais, no fundamentalismo religioso, na criminalidade, nos motins motivados pelas iniqüidades do consumo, na guerra civil e, nalguns casos, na perda de controle político sobre parte do território nacional. Essa crise do sujeito, significa que o sistema mundial capitalista, ao mesmo tempo que transnacionaliza os problemas, localiza as soluções e, efectivamente, dada a crise do Estado, faz baixar o patamar de localização para o nível subnacional”. (p. 320)

“Se, como disse acima, há certos problemas em relação aos quais ninguém poderá a prazo ganhar com a sua irresolução, parece ser impossível, nesses casos pelo menos, determinar o inimigo contra o qual seja preciso organizar uma solução do rpoblema. É certo que mencionei acima o papel das empresas multinacionais na criação dos nossos problemas pelo simples fato de serem elas hoje os únicos titulares de pensamento estratégico no sistema mundial. Mas é evidente que não são o único inimigo identificável nem tão-pouco me parece que o inimigo possa ser identificado apenas ou sobretudo ao nível institucional. Os nossos problemas são mais fundos, e as instituições só podem resolvê-los depois de transformadas e reinventadas ao nível a que os problemas ocorram”. (p. 321)

A utopia e os conflitos paradigmáticos

“O futuro já não é o que era, diz um graffitto numa rua de Buenos Aires. O futuro prometido pela modernidade não tem, de facto, futuro. DescrÊ dele, vencida pelos desafios, a maioria dos povos da periferia do sistema mundial, porque em nome dele negligenciaram ou recusaram outros futuros, quiçá menos brilhantes e mais próximos do seu passado, mas que ao menos asseguravam a subsistência comunitária e uma reação equilibrada com a natureza, que agora se lhes deparam tão precárias”. (p. 322)

“ Penso, pois, que, perante isto, só há uma saída: reinventar o futuro, abrir um novo horizonte de possibilidades, cartografado por alternativas radicais que deixaram de o ser”. (p. 322)

“Perante isto como proceder? Penso que só há uma solução: a utopia. A utopia é a exploração de novas possibilidades e vontades humanas, por via da oposição da imaginação à necessidade do que existe, só porque existe, em nome de algo radicalmente melhor que a humanidade tem direito de desejar e porque merece a pena lutar”. (p. 323)

“Apesar de algumas idéias utópicas serem eventualmente realizadas, não é da natureza da utopia ser realizada. Pelo contrário, a utopia é a metáfora de uma hipercarência formulada ao nível a que não pode ser satisfeita”. (p. 324)

“O que proponho a seguir não é uma utopia. É tão-só uma heterotopia. Em vez da invenção de um lugar totalmente outro, proponho uma deslocação radical dentro de um mesmo lugar, o nosso”. (p. 325)

“Aliás especula que as nossas peculiaridades não serão menores que as dos lunares e conclui, com a distancia lúdica que nos recomenda, ‘estaremos reduzidos a dizer que os deuses estavam bêbados quando fizeram os homens e que quando olharam a sua obra, já sóbrios, não puderam deixar de rir’(1955: 90)”. (p. 325)

“Os fragmentos pré-paradigmáticos são por enquanto um paradigma virtual e nem sequer é seguro que à modernidade se seguirá um outro paradigma com a com a mesma coerência global e pretensão totalizadora que ela teve”. (p. 327)

Conhecimento e subjectividade

“O novo paradigma constitui uma alternativa a cada um destes traços. Em primeiro lugar, nos seus termos não há uma única forma de conhecimento válido. Há muitas formas de conhecimento, tantas quantas as práticas sociais que se geram e as sustentam. A ciência moderna é sustentada por uma prática de divisão técnica profissional e social do trabalho e pelo desenvolvimento tecnológico infinito das forças produtivas de que o capitalismo é hoje único exemplar”. (p. 328)

“O que se pretende é, pois, uma concorrência epistemológica leal entre conhecimentos com o processo de reinventar as alternativas de prática social de que carecemos ou que afinal apenas ignoramos ou não ousamos desejar”. (p. 329)

“Esse ponto de chegada depende do processo argumentativo no interior das comunidades interpretativas. O conhecimento do novo paradigma não é validável por princípios demonstrativos de verdades intemporais. É, pelo contrário, um conhecimento retórico cuja validade depende do poder de convicção dos argumentos em que é traduzido”. (p. 329)

“Um dos princípios reguladores da validação é, pois, a democraticidade interna da comunidade-interpretativa. O outro princípio é um valor ético intercultural, o valor da dignidade humana. O novo paradigma não distingue entre meios e fins, entre cognição e edificação. O conhecimento, estando vinculado a uma prática e a uma cultura, tem um conteúdo ético próprio”. (p. 330)

“O novo paradigma entende que o racionalismo estreito, mecanicista, utilitarista e instrumental da ciência moderna, combinado com a expansão da sociedade de consumo, obnubilou, muito para além do que previra Schiller, a capacidade de revolta e de surpresa, a vontade de transformação pessoal e coletiva e que, por isso, a tarefa de reconstrução dessa capacidade e dessa vontade é, em finais do século XX, muito mais urgente do que era em finais do século XVIII. De resto, para além de Schiller, outros criadores culturais, cuja as ideias e utopias foram ainda mais suprimidas ou marginalizadas que as de Schiller, podem ser convocados para levar a cabo tal tarefa”. (p. 333)

“A desconfiança das abstrações é fundamental no novo paradigma. Não que elas não possam ser aceites, mas que só o sejam quando os contextos da sua realização lhes fazem jus. Por exemplo, o conceito abstracto de direitos humanos começa hoje, dois séculos depois da sua formulação, a fazer verdadeiros sentido na medida em que por todo o sistema mundial grupos sociais estão a organizar lutas de emancipação guiadas por ele”. (p. 334)

Padrões de transformação social

“A segunda nota é que o conflito paradigmático não é apenas terçado a nível intelectual, como tem acontecido, pelo menos até agora, com o conflito epistemológico; é, além disso, e cada vez mais, um conflito social e político sustentado por grupos e interesses organizados, ainda que com poder e organização muito desiguais”. (p. 335-336)

“Na transição paradigmática, o Estado será dito Estado-Providencia quando assegurar a concorrência em igualdade de circunstâncias entre os paradigmas rivais”. (p. 337)

“Ao nível do espaço-tempo da cidadania, a confrontação entre os paradigmas é particularmente crucial e difícil de manter, uma vez que, sendo o Estado a forma institucional deste espaço-tempo, tem de promover o conflito paradigmático no interior de si mesmo e é por isso que a quarta dimensão providencial do Estado em Pasárgada 2 é autoprovidência do Estado para consigo mesmo. Neste espaço-tempo,  conflito paradigmático ocorre entre o paradigma da obrigação política vertical e o paradigma da obrigação política horizontal”. (p. 338)

“O princípio da soberania exclusiva, tal como foi desenvolvido pelo paradigma dominante, torna na prática possível que os Estados mais fortes, invocando interesses nacionais, nomeadamente de segurança nacional, possam exercer as suas prerrogativas de soberania à custa da soberania dos Estados mais fracos”. (p. 340)

Poder e política

“A terceira grande área de contradição e competição paradigmática é o poder e a política. Esta área é talvez mais importante que as demais na medida em que nela se concebem e forjam as coligações capazes de conduzir a transição paradigmática. A dificuldade de tal tarefa está em que a transição paradigmática reclama, muito mais que uma luta de classes, uma luta de civilizações, e reclama-o num momento em que nem sequer a luta de classes parece estar na agenda política”. (p. 341)

“Nisso consiste o processo global de democratização. Este paradigma envolve uma enorme expansão do conceito da democracia em varias direcções, uma delas está na já explicitada no acabei de descrever. Como vimos, a democracia deve ser expandida do espaço-tempo da cidadania – onde aliás vigora com fortes limitações, como vimos – ao restantes espaços-tempo estruturais”. (p. 344)

“Daí que na transição paradigmática se tolere a imperfectibilidade das palavras e dos cálculos se ela se traduzir numa maior razoabilidade e equidade das acções e das consequências”. (p.346)     

Pôde-se entender no fichamento da presente obra, toda a conflituosidade existente no paradigma da transformação social dos povos no espaço-tempo. Sendo assim, deve ser salientado que a transição paradigmática deverá tolerar a imperfectibilidade dos meios utilizados para se chegar ao final proposto. Em outras palavras, deverá haver mais paciência para que seja possível alcançar tais objetivos.