Fichamento
organizado por: Roberta Ochulacki.
Disponibilizado
para: Grupo de Pesquisa "Mediação e
Justiça Restaurativa: paradigmas emergentes de resolução de conflitos no século
XXI"
Vinculado ao Curso: Mestrado
em Direito – URI Santo Ângelo.
Bibliografia:
SANTOS, Boaventura de Souza. Pela Mão de Alice, O social e o político na pós-modernidade. 8ª.
São Paulo: Cortez, 2001.
Capítulo 1
Cinco
desafios à imaginação sociológica. (p. 17).
“Os desafios,
quaisquer que eles sejam, nascem de perplexidades produtivas. Tal como
Descartes exercitou a dúvida sem a sofrer, julgo ser hoje necessário exercitar
a perplexidade sem a sofrer. Se quisermos, como devemos, ser sociólogos da
nossa circunstância, deveremos começar pelo contexto sócio-temporal de que emergem
as nossas perplexidades. ” (p. 17).
Oitenta/Noventa
O autor
propõe neste primeiro capítulo, uma abordagem sócio-temporal como exercício de
análise das perplexidades emergentes deste tema.
“Está na
tradição da sociologia preocupar-se com a “questão social”, com as
desigualdades sociais, com a ordem/desordem autoritária e a opressão social que
parecem ir de par com o desenvolvimento capitalista. À Luz desta tradição, a
década de oitenta é sem dúvida uma década para esquecer” (p. 17).
“No seu decurso,
aprofundou-se, nos países centrais, a crise do Estado-Providência que já vinha
da década anterior e com ela agravaram-se as desigualdades sociais e os
processos de exclusão social [...]” (p. 17).
“Nos países
periféricos o agravamento das condições sociais, já de si tão precárias, foi
brutal” (p. 17).
“Se as
assimetrias sociais aumentaram no interior de cada país, elas aumentaram ainda
mais entre o conjunto dos países do Norte e o conjunto dos países do Sul” (p. 17 a 18).
Diante deste
quadro econômico, alguns festejaram como sendo a dor necessária de uma ordem
econômica neoliberal e outros a denunciaram como uma desordem a necessitar ser
substituída por outra nova ordem econômica internacional.
“A arrogância
dos primeiros e a impotência dos segundos põe a sociologia decididamente de
candeias às avessas com a década de oitenta” (p. 18).
“O outro
pilar da tradição intelectual da sociologia é a preocupação com a participação
social e política dos cidadãos e dos grupos sociais, com o desenvolvimento comunitário
e a acção colectiva, com os movimentos sociais” (p. 18).
Sob este
outro viés, o Autor conclui que a década de oitenta se reabilitou de maneira
brilhante.
“Foi a década
dos movimentos sociais e da democracia, do fim, do comunismo autoritário e do apartheid, do fim do conflito
Leste-Oeste [...]” (p.18).
O Autor
conclui com diversos questionamentos sobre como nos deparamos com as constantes
transformações ocorridas durante as décadas de oitenta e noventa e sintetiza.
“[...] as
transformações não são mais que todos nós, todos os cientistas sociais e todos
os não-cientistas sociais deste mundo a transformarmo-nos” (p.18).
Entre a auto-teoria e a auto-realidade
É próprio da
sociologia, ter um ângulo de observação e de análise, então indaga o autor, qual
é este ângulo e como mantê-lo nas condições presentes e futuras próximas?
“A rapidez, a
profundidade e a imprevisibilidade de algumas transformações recentes conferem
ao tempo presente uma característica nova: a realidade parece ter tomado
definitivamente a dianteira sobre a teoria” (p. 18).
O Autor
observa que com isto, a realidade torna-se hiper-real e parece também,
teorizar-se a si mesma.
“A rapidez e
a intensidade com que tudo tem acontecido se, por um lado, torna a realidade
hiper-real, por outro lado, trivializa-a, banaliza-a, uma realidade sem
capacidade para nos surpreender ou empolgar” (p. 19).
Observa ainda
que uma realidade que assim se apresenta torna-se fácil de teorizar, a
banalidade nos faz crer que a teoria é a própria realidade com outro nome.
“Vivemos
assim uma condição complexa: um excesso de realidade que se parece com um
défice de realidade; uma auto-teorização da realidade que mal se distingue da
auto-realização da teoria (p. 19).
Defende que é
muito difícil reivindicar um ângulo de análise e pior ainda, mantê-lo numa
condição assim deste tipo, embora não dê a análise sociológica por vencida.
“Não está na
tradição da sociologia desistir dessa reivindicação e, valha a verdade, alguns
fatores ocorrem a favor do seu sucesso” (p. 19).
“A tradição da sociologia é neste domínio
ambígua. [...] Os desafios que nos são colocados, exigem de nós que saiamos
deste pêndulo. Nem guiar nem servir. Em vez de distância crítica, a proximidade
crítica. Em vez de compromisso orgânico, o envolvimento livre. Em vez de
serenidade autocomplacente, a capacidade de espanto e de revolta” (p. 19).
Como afirmou
de início, os desafios se manifestam inicialmente como perplexidades produtivas
e ousa ainda, apontar aquelas cinco de que vamos nos ocupar nos
próximos anos.
Das perplexidades aos desafios
A primeira
delas nos revela que os problemas mais absorventes são de natureza econômica
como desemprego, taxas de juros, dívidas externas, política econômica em geral,
contudo, em aparente contradição com isto, a teoria e a análise sociológica dos últimos anos, vem
desvalorizando o econômico em detrimento do político, do cultural e do
simbólico, bem como desvalorizando os modos de produção em detrimento dos modos
de vida.
“Será esta
contradição não apenas aparente mas também real? E se assim for, estaremos a
falhar o alvo analítico e a cavar a nossa própria marginalidade? Ou será, pelo
contrário, que estes diferentes factores e conceitos e as distinções em que
assentam (economia, política, cultura), todas legadas pelo século XIX, estão
Hoje superados e exigem uma reconstrução teórica radical? E neste caso, como
fazê-la?” (p. 20).
A segunda
perplexidade, o Autor formula em cima das práticas transnacionais, práticas que
acarretam como principal consequência a marginalização do Estado nacional, a
perda de sua capacidade de regulação social e de sua autonomia.
“Contudo, no
nosso quotidiano, raramente somos confrontados com o sistema mundial e, ao
contrário, somos obsessivamente confrontados com o Estado, que ocupa as páginas
dos nossos jornais e os noticiários das nossas rádios e televisão, que tanto
regulamenta a nossa vida para regulamentar como para desregulamentar. Será
então o Estado nacional uma unidade de análise em vias de extinção, ou pelo
contrário, é hoje mais central do que nunca, ainda que sob a forma ardilosa da
sua descentração?” (p. 20).
A terceira
perplexidade ou desafio consiste no regresso do indivíduo, na revalorização das
práticas e processos e, por conseguinte, dos indivíduos que os protagonizam.
“Contudo, em
aparente contradição com isto, o indivíduo parece hoje menos individual do que
nunca, a sua vida íntima nunca foi tão pública, a sua vida sexual nunca foi tão
codificada, a sua liberdade de expressão nunca foi tão inaudível e tão sujeita
a critérios de correção política, a sua liberdade de escolha nunca foi tão
derivada das escolhas feitas por outros antes dele. [...] Como fazer vingar a
preocupação tradicional da sociologia com a participação e a criatividade
sociais numa situação em que toda a espontaneidade do minuto um se transforma,
no minuto dois, em artefacto mediático ou mercantil de si mesma?” (p. 21).
A quarta
perplexidade diz respeito às clivagens sócio-políticas, que muito importantes,
acabaram por se inscrever na tradição das ciências sociais, no entanto, o final
do século apresenta uma surpreendente atenuação dessas clivagens e sua
substituição por um consenso a respeito de um dos maiores paradigmas da
modernidade: a democracia.
“A década
anterior, não só viveu muitos processos de democratização, como instituições
insuspeitas a esse respeito abraçaram publicamente o credo democrático” (p.
21).
“Por um lado,
se a democracia é hoje menos questionada do que nunca, todos os seus conceitos
satélites têm vindo a ser questionados e declarados em crise: a patologia da
participação, sob forma do conformismo, do abstencionismo e da apatia política;
a patologia da representação, sob a forma da distância entre eleitores e
leitos, do ensinamento dos parlamentares, da marginalização e governamentalização
dos parlamentos, etc. Por outro lado, se atentarmos na história européia desde
meados do século XIX, verificamos que a democracia e o liberalismo econômico
foram sempre má companhia um para o outro. Quando o liberalismo econômico
prosperou a democracia sofreu e vice-versa. Contudo, supreendentemente, hoje a
promoção da democracia a nível internacional é feita conjuntamente com o
neoliberalismo e de facto em dependência dele” (p. 21).
A quinta e
última perplexidade, surge com a intensificação da interdependência
transnacional e das interações globais, faz com que as relações sociais pareçam
cada vez mais desterritorializadas, transpondo as fronteiras estabelecidas
pelos costumes, nacionalismos, línguas e ideologias.
“Contudo, e
aparentemente em contradição com esta tendência, assiste-se a um desabrochar de
novas identidades sociais e locais alicerçadas numa revalorização do direito às
raízes (em contraposição com o direito à escolha). [...] Semelhantemente, o
aumento da mobilidade transacional inclui fenômenos muito diferentes e
contraditórios: por um lado, a mobilidade de quem tem a iniciativa dos
processos transacionais que criam a mobilidade [...] por outro, a mobilidade de
quem sofre esses processos [...] Acresce que a mobilidade transacional e a
aculturação global de uns grupos sociais parece correr de par com o
aprisionamento e a fixação de outros grupos sociais” (p. 22).
“O exercício
das nossas perplexidades é fundamental para identificar os desafios a que
merece a pena responder. Afinal todas as perplexidades e desafios resumem-se
num só: em condições de aceleração da história como as que hoje vivemos é
possível pôr a realidade no seu lugar sem correr o risco de criar conceitos e
teorias fora do lugar?” (p. 22).
Capítulo 2
Tudo o que é sólido se desfaz no ar: o Marxismo também?
“A
radicalidade do capitalismo residia em que ele, longe de ser apenas um novo
modo de produção, era a manifestação epocal de um novo e muito mais amplo
processo civilizatório, a modernidade, e, como tal, significava uma mudança
societal global, uma mudança paradigmática” (p. 23).
“A grande
complexidade, se não mesmo ambiguidade, do Manifesto está em que nele se
condena o capitalismo na mesma estratégia discursiva em que se celebra a
modernidade” (p. 23).
“A ciência e
o progresso, a liberdade e a igualdade, a racionalidade e a autonomia só podem
ser plenamente cumpridas para além do capitalismo, e todo o projecto político,
científico e filosófico de Marx consiste em conceber e promover esse passo” (p.
23).
“A simetria
antagónica da solidez do capitalismo e do marxismo e a história das estratégias
de cada um deles para dissolver o outro no ar constituem uma das narrativas
centrais da modernidade no nosso século, e nela, a narrativa sociológica é uma
das mais apaixonantes” (p. 24).
Uma história para todos
1890-1920
“No plano da
produção teoria e solciológica, este período, iniciado, de facto, na última
década do século XIX, pode ser considerado a idade de ouro do marxismo” (p.
24).
“Inicia-se
então um dos debates paradigmáticos da sociologia contemporânea, entre a teoria
de Marx e a teoria de Marx Weber, outro grande fundador da sociologia, um
debate sobre as origens do capitalismo, sobre o papel da economia na vida
social e política, sobre as classes sociais e outras formas de desigualdade
social, sobre as leis de transformação social e, em suma, sobre o socialismo”
(p. 25).
“A riqueza da
reflexão marxista tem obviamente a ver com pujança do movimento socialista
neste período e esta é também responsável por duas grandes cisões nessa
reflexão, uma de caráter predominantemente político e outra de caráter
predominantemente epistemológico, que se prolongaram até aos nossos dias” (p.
25).
“Importante é
reter que depois desta cisão o pensamento marxista não voltou a ser o mesmo”
(p. 25).
“A tensão que
assim se criou no interior do pensamento marxista não mais deixou de o habitar,
como o demonstram ainda hoje, de modo antagónico, correntes tão importantes
como a Escola de Frankfurt, de um lado, e mais recentemente o chamado marxismo
analítico, do outro” (p. 26).
Os anos trinta e quarenta
“Desta vez,
foram o capitalismo imperialista e o fascismo que pareceram ter a força
suficiente para desfazer o marxismo no ar” (p. 26).
Dos anos cinquenta aos anos setenta
“Profundamente
transformada, a solidez radical do marxismo afirma-se de novo capaz de desfazer
o capitalismo no ar, se não o capitalismo central, pelo menos o capitalismo
periférico” (p. 26).
“A
diversíssima natureza destes processos de transformação social e a sua
dispersão pelos diferentes espaços do sistema mundial tinham por força de
suscitar profundas revisões no pensamento marxista” (p. 27).
“Pode-se
dizer que neste período foi a solidez do marxismo que de algum modo se virou
contra ele próprio e o desfez no ar. Os sinais de força transmutaram-se em
sinais de fraqueza” (p. 28).
“Se para
quase todos os cientistas sociais era claro que Marx se equivocara nas suas
previsões acerca da evolução das sociedades capitalistas, o mais importante
era, no entanto, reconhecer que estas sociedades se tinham transformado a tal
ponto desde meados do século XIX que, qualquer que tivesse sido o mérito
analítico de Marx no estudo da sociedade do seu tempo, as suas teorias só com
profundas revisões teriam alguma utilidade analítica no presente” (p. 29).
Os anos oitenta
“A década de
oitenta é, sob diferentes formas, a década do pós-marxismo. Mas do que em
qualquer outro período anterior, a solidez e radicalidade do capitalismo ganhou
ímpeto para desfazer o marxismo no ar e desta vez para o desfazer aparentemente
com grande facilidade e para sempre” (p. 29).
“À medida que
se multiplicaram, as “grandes revisões” do marxismo perderam o acúmen polémico,
trivializaram-se de algum modo e abriram espaço para cada um construir à sua
maneira o seu marxismo ou o seu pós-marxismo” (p. 30).
“Fora dos
países centrais, a dissolução do marxismo no ar foi talvez menos pronunciada e
a sociologia de inspiração marxista continuou a produzir reflexões e análises
valiosas” (p. 31).
“Dura já há muito
o debate no interior da teoria marxista sobre a tensão ou equilíbrio entre
estrutura e acção, entre, por um lado, os constrangimentos e as possibilidades
sociais que preexistem à ação dos indivíduos e grupos sociais e a condicionam
de modo mais ou menos decisivo; e, por outro lado, a autonomia, a criatividade
e a capacidade dos mesmos indivíduos e grupos de, por via da sua acção prática,
mudarem as estruturas e trasformarem a sociedade” (p. 31).
“Se o período
anterior, sobretudo a década de sessenta, privilegiou uma leitura estrutural, a
década de oitenta privilegiou uma leitura antiestrutural” (p. 31).
“A chamada de
atenção para a importância e a especificidade da exploração do trabalho e da
identidade femininas, não só no espaço da produção capitalista, como também no
espaço doméstico e na esfera pública em geral, constituiu o contributo mais
importante para a sociologia dos anos oitenta” (p. 32).
Um futuro para todos
“Não estamos,
pois, perante uma moda teórica dos anos sessenta que, como muitas outras modas
do mesmo período, não é moda estarem agora em moda. Estamos antes
perante um dos pilares das ciências sociais da modernidade e tudo o que nele
ocorrer não pode deixar de se repercutir no conjunto destas” (p. 32 e 33).
“Tais
transformações decorrerão, como sempre aconteceu no passado, da novidade dos
problemas e dos desafios com que se confrontam os cientistas sociais de uma
dada época” (p. 33).
“[...] Mas
por outro lado, ao tentar prever mais longe e mais radicalmente, Marx
apresentou, talvez contra a sua vontade, uma das últimas grandes utopias da
modernidade: é hoje claro que todo o socialismo é utópico ou não é socialismo”
(p. 34).
“Por um lado,
a conversão do progresso em acumulação capitalista transformou a natureza em
mera condição de produção. Os limites desta transformação começam hoje a ser
evidentes e os riscos e perversidades que acarreta, alarmantes, bem
demonstrados nos perigos cada vez mais iminentes de catástrofe ecológica. Por
outro lado, sempre que o capitalismo teve de confrontar-se com as suas
endémicas crises de acumulação, fê-lo ampliando a mercadorização da vida,
estendendo-a a novos bens e serviços e a novas relações sociais e fazendo-a
chegar a pontos do globo até então não integrados na economia mundia. Por uma e
outra via, tal processo de expansão e ampliação parece estar a atingir limites
inultrapassáveis. A mercadorização e mercantilização de bens e serviços até
agora livres começa hoje a envolver, com a biogenética, o próprio corpo humano,
e quando isso suceder não será possível ir mais longe” (p. 34-35).
“A sociologia
de Marx é, em geral, coerente com a utopia de Marx, mas não se confunde com
ela” (p. 36).
Processos de determinação social
“Um dos
grandes méritos de Marx é o ter-se centrado na análise de transformações
macro-sociais” (p. 36).
“O
determinismo possibilitou a Marx desenvolver uma série de conceitos (forças
produtivas, relações de produção, modo de produção) que lhe permitiram proceder
a uma análise global da sociedade capitalista e definir a direcção da sua
transformação futura. Essa análise, apesar de incompleta, continua hoje a ser
valiosa, e os conceitos que Marx desenvolveu para efectuar continuam a ter um
grande valor heurístico” (p. 37).
“Isto não
significa, contudo, que a sociedade seja totalmente contingente ou
indeterminada, como querem Laclau e Mouffe” (p. 37).
“Cada vez
mais, os fenômenos mais importantes são simultaneamente econômicos, políticos e
culturais, sem que seja fácil ou adequado tentar destrinçar estas diferentes
dimensões. Estas são produto das ciências sociais oitocentistas e revelam-se
hoje muito pouco adequadas, sendo tarefa urgente dos cientistas sociais
descobrir outras categorias que as substituam” (p. 38).
Acção colectiva e identidade
“Já fereri,
embora isso seja controverso, que em minha opinião, a obra de Marx no seu todo
procura obter um equilíbrio, embora instável, entre estrutura e acção: os
homens e as mulheres não são mais produtos da história do que são seus
produtores” (p. 39).
“Em primeiro
lugar, a evolução das classes nas sociedades capitalistas não seguiu o trilho
que Marx lhe traçou” (p. 40).
“[...] Por
último, sobretudo nas últimas três décadas, os movimentos e as lutas políticas
mais importantes nos países centrais e mesmo nos países periféricos e semiperiféricos
foram protagonizadas por grupos sociais congregados por identidades não
directamente classistas, por estudantes, por mulheres, por grupos étnicos e
religiosos, por grupos pacifistas, por grupos ecológicos, etc., etc” (p. 40).
“Em face
disto, não surpreende que tanto a primazia explicativa, como a primazia
transformadora das classes estejam hoje a ser radicalmente questionadas” (p.
41).
“[...] A
crítica mais profunda e consequente veio da sociologia feminista
“[...] Ao
privilegiar a opressão de classe, o marxismo secundarizou e, no fundo, ocultou
a opressão sexual e, nessa medida, o seu projecto emancipatório ficou
irremediavelmente truncado” (p. 41).
“As classes
são uma forma de poder e todo o poder é político [...] Uma família operária da
periferia de Lisboa sofre simultaneamente o poder de classe, o poder sexual, o
poder estatal e até, se forem imigrantes africanos, o poder étnico” (p. 42).
Direcção da transformação social
“Um dos
maiores méritos de Marx foi o de tentar articular uma análise exigente da
sociedade capitalista com a construção de uma vontade política radical de a
transformar e superar numa sociedade mais livre, mas igual, mais justa e afinal
mais humana [...] trata-se agora de saber se, uma vez que o sujeito histórico
de Marx falhou à história, pelo menos até agora, falhou com ele a utopia de
transformação que lhe era atribuída. Trata-se, além disso, e ainda mais
radicalmente, de saber se esta averiguação tem hoje algum interesse” (p. 42).
“[...] A
crise final de um determinado sistema social reside em que a crise de regulação
social ocorre simultaneamente com a crise de emancipação” (p. 42 e 43).
“Julgo, pois,
que precisamos da utopia como do pão para a boca. Marx ensinou-nos a ler o real
existente segundo uma hermenêutica de suspeição e ensinou-nos a ler os sinais
de futuro segundo uma hermenêutica de adesão [...] Em suma, a utopia de Marx é,
em tudo, um produto da modernidade e, nessa medida, não é suficientemente
radical para nos Aguiar num período de transição paradigmática. Devido a um
desequilíbrio, criado pela ciência moderna entre a capacidade de acção, que é
cada vez maior, e a capacidade de previsão, que é cada vez menor, o futuro é
hoje para nós, ao contrário do que foi para Marx, simultaneamente mais próximo
e mais imprescrutável” (p. 43).
“[...] Foi a
partir da consciência da opressão que nas últimas três décadas se formaram os
novos movimentos sociais” (p. 44).
“Esta
reconceptualização ilustra bem como as mesmas condições que, nas nossas
sociedades de fim de século, reclamam uma hermenêutica de suspeição do tipo da
que Marx emprendeu, reclamam igualmente uma profunda revisão e transformação do
marxismo tal como o conhecemos. A solidez do marxismo reside essencialmente em
necessitarmos dessa hermenêutica de suspeição para decidir sobre o que do
marxismo deve ser desfeito no ar”. (p. 45).
Capítulo 3
Na segunda
parte da obra Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade -
Condições de Intelegibilidade - Boaventura de Sousa Santos menciona onze teses
que refere ser por ocasião de mais uma descoberta de Portugal. As abordagens
usadas são ora apropriadas às sociedades desenvolvidas, ora o são às sociedades
periféricas do terceiro mundo.
“Apesar de ser um país europeu e de os
portugueses serem tidos por povo afável, aberto e sociável, é Portugal
considerado um país relativamente desconhecido. Apesar de ser um país com longa
história de fronteiras abertas e de “internacionalismo”, é considerado um país
exótico, idiossincrático. Desconhecimento e exotismo são, pois, temas
recorrentes quando se trata de propor uma apreciação global do país e de seu
povo.” ( p. 53)
“A violação
recorrente das liberdades cívicas e a atitude hostil à razão crítica fez com
que acabasse por dominar a crítica da razão geradora dos mitos e esquecimentos
com que os portugueses teceram os seus desencontros com a história. O
desconhecimento de Portugal é, antes de mais, um auto- desconhecimento”. (p.54)
“Na segunda
metade do século XIX e nos princípios do século XX nasceram nos países desenvolvidos
da Europa as ciências sociais. Fundadas criticamente no pensamento social e
político iluminista do século XVIII, tinham por vocação desmitificar e
desmistificar as crenças sociais até então aceites como pensamento rigoroso de
uma forma de pensar sem rigor (o senso comum)”. (p.54-55)
“Terminada
(definitivamente) a repressão com a revolução de 25 de abril de 1974,
criaram-se algumas condições para o desenvolvimento, tão tardio quanto urgente,
das ciências sociais.” (p.55)
“Como só há
um sistema mundial, não é possível fazer comparações com outros sistemas que
lhe sejam exteriores. Sendo assim, a unicidade dos diferentes países reside
tão-só no modo diferente e específico como cada um se integra no sistema
mundial.” ( p. 56)
“[...] As
ciências físico-naturais aplicadas estão especificamente apetrechadas para
determinar diferenças quantitativas (níveis de rendimento, taxas de
mortalidade, etc.), como diferenças quantitativas (estrutura de classes,
padrões de consumo e suas relações com padrões de produção, características da
sociedade civil, etc.) [...]” (p. 57)
“[...]
Portugal é uma sociedade de desenvolvimento intermédio. Algumas características
sociais (taxa de crescimento populacional, leis e instituições, algumas
práticas de consumo, etc.) aproximam-na das sociedades mais desenvolvidas,
enquanto outras (infra-estruturas coletivas, políticas culturais, tipo de
desenvolvimento industrial, etc.) a aproximam das sociedades menos
desenvolvidas [...].” (p.57-58)
“Num “estudo”
sobre o “caráter nacional português”, Jorge Dias traça assim, em 1950, a
“personalidade base” dos portugueses. “O português é um misto de sonhador e de
homem de ação, ou, melhor, é um sonhador ativo, a que não falta certo fundo
prático e realista”. Há no português uma enorme capacidade de adaptação a todas
as coisas, idéia e seres, sem que isso implique perda de caráter [...]”. (p.59)
“[...] E,
finalmente, é um povo paradoxal e difícil de governar. Os seus defeitos podem
ser as suas virtudes e as suas virtudes os seus defeitos, conforme a ágide do
momento”. (p.60)
“[...] Em
qualquer dos seus matizes é um senso comum conservador, quer porque assenta
numa visão naturalista da história, quer porque reivindica para as elites a
responsabilidade da sua produção [...]” (p. 60)
“Este senso
comum assenta em três topoi retóricos fundamentais. O primeiro é que somos
espanhóis diferentes. Somo-lhes contrapostos a partir de um fundo de
cumplicidade. Para Jorge Dias, a religiosidade portuguesa não tem o caráter
abstrato, místico ou trágico próprio da espanhola tem... um cunho humano, acolhedor e
tranquilo. [...]” (p.60)
“O segundo
topos do senso comum elitista sobre os portugueses é que no caráter português
se misturam elementos contraditórios, o que lhe confere uma ambiguidade e uma
plasticidade especiais. [...] “(p. 61)
“O terceiro
topos consiste na oscilação entre visões positivas e visões negativas da
condição do “homem português”. Enquanto o primeiro estudo de Jorge Dias sobre o
caráter nacional, datado de 1950, é otimista, o segundo estudo, datado de 1968,
é profundamente pessimista.” (p.62)
“É
importante, acima de tudo, transformar esse conhecimento num novo senso comum
sobre os portugueses, menos mistificador, mas mais proporcionado, menos
celebratório, mas mais eficaz, menos glorioso, mas mais emancipador [...]”.
(p.63)
“[...] As
sociedades de desenvolvimento intermédio exercem uma função de intermediação no
sistema mundial, servindo simultaneamente de ponte e de tampão entre os países
centrais e os países periféricos [...]”. (p.63)
“[...] o
modelo de desenvolvimento seguido em Portugal nos últimos dez anos tem maior
potencial periferizante do que centralizado. Assenta na desvalorização
internacional do trabalho português, ao optar por privilegiar, entre os setores
de exportação, aqueles que se encontra em crescente processo de desvalorização
internacional, como por exemplo, o setor têxtil. Em consequência, o padrão de
especialização produtiva da nossa economia baixou nos últimos dez anos,
enquanto o padrão espanhol aumentou. [...]” (p.64)
“[...] Se
assim for, Portugal consolidará numa nova base a sua posição semiperiférica no
sistema mundial. [...]” (p.65)
“[...] Ao
mesmo tempo que os nossos viajantes diplomatas e militares descreviam os
curioso hábitos e modos de vida dos povos selvagens com quem tomavam contato no
processo de construção do império, viajantes diplomatas e militares da
Inglaterra ou da França descreviam, ora com curiosidade ora com desdém, os
hábitos e modos de vida dos portugueses, para eles tão estranhos ao ponto de
parecerem pouco menos que selvagens. [...]” (p.65)
“A mesma
articulação entre elementos heterogêneos é detectável em múltiplos domínios.
Apenas um exemplo, Portugal seguiu um modelo de desenvolvimento agrícola e de
relações agricultura-indústria muito diferente daquele que foi adaptado pelos
países mais desenvolvidos da Europa. Em consequência, Portugal tem a mais
elevada percentagem européia de população a viver em meio rural e o operário
português típico é ainda hoje um semiproletário, pluriactivo, isto é, obtém
simultaneamente rendimentos do trabalho industrial e da agricultura. [...]”(p.66)
“A distância
entre representantes e representados torna possível a carnalização da política.
Por carnalização da política entendo a assimilação mimética de padrões de
actuação dos Estados e das sociedades políticas dos países centrais, sem que os
agentes políticos os interiorizem nas orientações operacionais da acção
política e os convertam em práticas políticas coerentes e duradouras. Esse tipo
de assimilação produz um efeito de descanonização dos processos ideológicos, um
distanciamento lúdico perante os efeitos da governação e confere a esta um tom
geral fársico.” (p. 69)
“É comum
considera-se que em Portugal a sociedade civil é fraca. Nos últimos anos tem-se
atribuído essa fraqueza à asfixiante força do Estado, pelo que se recomenda o
enfraquecimento deste para a sociedade civil possa finalmente prosperar. [...]”
(p. 69-70)
“A ponta de
verdade dessa concepção está em que a sociedade portuguesa não tem uma tradição
de organização formal, centralizada e autônoma de interesses sociais setoriais
bem definidos (interesses dos empresários, interesse dos trabalhadores, etc.),
capaz de gerar parceiros sociais fortes em permanente diálogo conflitual entre
si e com o Estado. [...]” (p. 70)
“Mas se
Portugal não tem um Estado-Província, tem, no entanto, uma forte sociedade-
providência que colmata em parte as deficiências da província estatal, uma
sociedade organizada informalmente segundo modelos tradicionais de solidariedade
social. [...]” (p.70)
“A
extrapolação idealista a partir deste dado sociológico transforma “o português”
em um homem “profundamente humano”, que “não gosta de fazer sofrer e evita
conflitos”, que “possui um grande fundo de solidariedade humana” e é extraordinariamente
solidário com os vizinhos”. [...] (p. 71)
“Dada a
dinâmica transnacional da época presente, não é possível postular futuro e
muito menos futuros nacionais. Apenas se poderá dizer que, para ser nosso, o
futuro que tivermos não poderá ser reduzido ao futuro dos outros.” (p.73)
Capítulo 4
“Muito mais
pacientemente que Saint-Simon – para quem em 1819 começava já a ser demasiado
tarde para o século XIX se libertar da herança do século XVIII e assumir a sua
especificidade (1977:212) – temos vindo a esperar pelo sentido do século XX.”
(p. 75)
“O paradigma cultural da modernidade
constitui-se antes de o modo de produção capitalista se ter tornado dominante e
extinguir-se-á antes de este último deixar de ser dominante.” (p. 76)
“Tanto o excesso na cumprimento de algumas
das promessas como o défice no cumprimento de outras são responsáveis pela
situação presente... uma situação de transição.” (p. 77)
“Assenta em
dois pilares fundamentais, o pilar da regulação e o pilar da emancipação... O
pilar da regulação é constituído pelo princípio do Estado [de Hobbes]; pelo
princípio do mercado [em Locke]; e pelo princípio da comunidade [de
Rousseau]... o da emancipação é constituído por três lógicas de racionalidade:
... a estético-expressiva da arte e da literatura; a... moral moral-prática da
ética e do direito; e a... cognitivo-instrumental da ciência e da técnica.” (p.
77)
“A
racionalidade estético-expressiva articula-se... com o princípio da comunidade,
porque nela se condensam as ideias de identidade e de comunhão, sem as quais
não é possível a contemplação estética. A racionalidade moral prática
liga-se... ao princípio do Estado na medida em que a este compete definir e
fazer cumprir um mínimo ético para o que é dotado do monopólio da produção e da
distribuição do direito... [e a] racionalidade cognitivo-instrumental tem uma
correspondência específica com o princípio do mercado... [onde] se condensam as
ideias da individualidade e da concorrência... [e] também porque já no século
XVIII são visíveis os sinais da conversão da ciência numa força produtiva.” (p.
77)
“O excesso
reside no próprio objectivo de vincular o pilar da regulação ao pilar da
emancipação e de os vincular a ambos à concretização de objectivos práticos de
racionalização global da vida colectiva e da individual.” (p. 78)
“Esta dupla
vinculação é capaz de assegurar o desenvolvimento harmonioso de valores
tendencialmente contraditórios... a construção abstracta dos pilares confere a
cada um deles uma aspiração de infinitude, uma vocação maximalista, quer seja a
máxima regulação ou máxima emancipação, que torna problemáticas, se não mesmo
impensáveis, estratégias de compatibilização entre eles, as quais
necessariamente terão de ser assentes em cedências mútuas e compromissos pragmáticos.”
(p. 78)
“O projecto
sócio-cultural da modernidade constitui-se entre o século XVI e finais do
século XVIII. Só a partir daí se inicia verdadeiramente o teste do seu
cumprimento histórico e esse momento coincide com a emergência do capitalismo
enquanto modo de produção nos países da Europa que integram a primeira grande
onda de industrialização.” (p. 78)
“[...] a
especificidade histórica do capitalismo reside nas relações de produção que
instaura entre o capital e o trabalho e são elas que determinam a emergência e
a generalização de um sistema de trocas caracterizadamente capitalista.” (p.
78-79)
“O primeiro
período cobre todo o século XIX... É o período do capitalismo liberal. O segundo... inicia-se no final do século XIX
e atinge seu pleno desenvolvimento no período entre as guerras e nas primeiras
décadas depois da 2ª Guerra Mundial... [é o] período do capitalismo organizado. O terceiro período inicia-se em geral nos
finais da década de sessenta... e é nele que nos encontramos hoje. Alguns autores
designam-no por período do capitalismo financeiro... designo-o provisoriamente
por período do capitalismo desorganizado...” (p. 79)
“O seu
fascínio reside em que nele explodem com grande violência as contradições do
projecto da modernidade: entre a solidariedade e a identidade, entre a justiça
e a autonomia, entre a igualdade e a liberdade.” (p. 80)
“Ao nível da
regulação, a ideia do desenvolvimento harmonioso entre os princípios do Estado,
do mercado e da comunidade... colapsa e decompõem-se no desenvolvimento sem
precedentes do princípio do mercado, na atrofia quase total do princípio da
comunidade e no desenvolvimento ambíguo do princípio do Estado sob a pressão
contraditória dos dois movimentos anteriores.” (p. 81)
“É que a
ligação orgânica... entre a lógica da dominação política e as exigências da
acumulação de capital, ao longo do século XIX, concretiza-se e fortalece-se
através de múltiplas e sucessivamente mais profundas intervenções do Estado.
Paradoxalmente, muitas destas intervenções do Estado são justificadas em nome
do princípio do laissez faire, um
princípio que preconiza o mínimo de Estado...” (p. 81)
“[...] cada
uma das três lógicas se desenvolve segundo processos de especialização e de
diferenciação funcional, tão bem analisados por Weber (1978), processos que, ao
mesmo tempo que garantem a maior autonomia a cada uma das esferas
(arte/literatura, ética/direito, ciência/técnica), tornam cada vez mais difícil
a articulação entre elas e sua interpenetração...” (p. 81)
“A primeira
assumiu uma forma elitista e é constituída pelo idealismo românico e pelo
grande romance realista... o idealismo românico representa... a vocação utópica
da realização plena da subjectividade inscrita no projecto da modernidade.” (p.
82)
“A outra
manifestação, no domínio moral-prático, assume outra forma desviante, a da
marginalização, e é constituída pelos vários projectos socialistas radicais,
tanto o chamado socialismo utópico,
como o chamado socialismo científico.”
(p. 83)
“O importante
é verificar que este primeiro período, ao mesmo tempo que experiência a
contradição nua e crua dos objectivos do projecto da modernidade, é capaz ainda
de manifestar, mesmo que de forma desviante, a vocação de radicalidade do
projecto e, nessa medida, recusa-se a aceitar a irreparabilidade do défice da
sua realização histórica.” (p. 83)
“O segundo
período é verdadeiramente a idade positiva de Comte. Procura distinguir no
projecto da modernidade o que é possível e o que é impossível de realizar numa
sociedade capitalista em constante processo de expansão, para de seguida se
concentrar no possível, como se fosse único.” (p. 83)
“[...] alarga
o campo do possível de modo a tornar menor ou, no mínimo, menos visível o
défice de cumprimento do projecto. Este processo histórico de concentração/exclusão
parte da ideia da irreversibilidade do défice para eliminar, em momento
posterior, a própria ideia do défice.” (p. 84)
“O princípio
do mercado continua a expansão pujante do período anterior... O capital
industrial, financeiro e comercial concentra-se e centraliza-se; proliferam os
cartéis;... aprofunda-se a luta imperialista pelo controlo dos mercados e das
matérias-primas;...surgem as grandes cidades industriais...” (p. 84)
“[...] [há uma] rematerialização da comunidade através da emergência
das práticas de classe e da tradução destas em política de classe. Este
processo de rematerialização social e política é um dos aspectos mais
característicos deste período e o seu dinamismo deve-se, em boa parte, às
transformações na composição das classes trabalhadoras...” (p. 84)
“A sua articulação cada vez mais compacta com o mercado
evidencia-se na progressiva regulamentação dos mercados, nas ligações dos
aparelhos do Estado aos grandes monopólios, na condução das guerras e de outras
formas de luta política pelo controlo imperialista dos mercados, na crescente
intervenção do Estado na regulação e institucionalização dos conflitos entre o
capital e o trabalho.” (p. 84-85)
“Todas estas transformações ao nível da regulação tiveram por
objectivo ou conseqüência redefinir o projecto da modernidade em termos do que
era possível na sociedade capitalista...” (p. 85)
“[...]as transformações podem ser simbolizadas pela passagem da
cultura da modernidade ao modernismo cultural. O modernismo designa aqui a nova
lógica da racionalidade moral-prática, como para a racionalidade
científico-técnica.” (p. 85)
“[...] o que caracteriza mais profundamente o modernismo é a sua
‘ansiedade de contaminação’, da contaminação com a política ou com a cultura
popular ou de massas...” (p. 85)
“No caso da moral-prática está presente, por um lado, na forma
política do Estado que ao mesmo tempo que penetra mais profundamente na
sociedade fá-lo através de soluções legislativas, institucionais e burocráticas
que o afastam progressivamente dos cidadãos, aos quais, de resto, é pedida cada
vez a obediência passiva em substituição activa. E está, por outro lado,
presente na emergência e consolidação de uma ciência jurídica, dogmática e
formalista...” (p. 86)
“[...] pelo surgimento das várias epistemologias positivistas,
pela construção de um ethos
científico ascético e autónomo perante os valores e a política, pela
glorificação de um conhecimento científico totalmente distinto do conhecimento
do senso comum e não contaminado por ele, e ainda pela crescente especialização
das disciplinas...” (p. 86)
“O projeto da modernidade cumpre-se assim em excesso porque em
tudo o que cumpre excede todas as expectativas... e em tudo o que não cumpre é
suficientemente convincente para negar que haja algo ainda a cumprir.” (p. 86)
“O terceiro período, que começa nos anos sessenta...” ( p. 87)
“[...] o capitalismo só pode ser dito desorganizado na medida em
que colapsaram no terceiro período muitas das formas de organização que tinham
vigorado no período anterior.” (p. 87)
“O princípio do mercado adquiriu pujança sem precedentes, e tanto
que extravasou do econômico e procurou colonizar tanto o princípio do Estado,
como o princípio da comunidade...” (p. 87)
“No plano econômico, os desenvolvimentos mais dramáticos são os
seguintes: o crescimento explosivo do mercado mundial, propulsionado por um
novo agente criado à sua medida – as empresas multinacionais -, torna possível
contornar, se não mesmo neutralizar, a capacidade de regulação nacional da
economia;” ( p. 88)
“[...] os mecanismos corporativos de regulação dos conflitos entre
capital e trabalho, estabelecidos a nível nacional no período anterior,
enfraquecem e a relação salarial torna-se mais precária...” (p. 88)
“O princípio da comunidade atravessa transformações paralelas. A
rematerialização da comunidade, obtida no período anterior através do
fortalecimento das práticas de classe, parece enfraquecer de novo...” (p.
88)
[...] em paralelo com uma certa descentração das práticas de classe
e das políticas de distribuição de recursos em que se tinham cristalizado (de
que é máximo exemplo o Estado-Providência), surgem novas práticas de
mobilização social, os novos movimentos sociais orientados para reivindicações
pós-materialistas (a ecologia, o antinuclear, o pacifismo);” (p. 88)
“O Estado
nacional parece ter perdido em parte a capacidade e em parte a vontade para
continuar a regular as esferas da produção (privatizações, desregulação da
economia) e da reprodução social (retracção das políticas sociais, crise do
Estado-Providência);... esta fraqueza externa do Estado é, no entanto,
compensada pelo aumento do autoritarismo do Estado... pela própria congestão
institucional da burocracia... e em parte... pelas próprias políticas do Estado
no sentido de devolver à sociedade civil competências e funções que assumiu no
segundo período e que agora parece... incapaz de exercer e desempenhar.” ( p.
89)
“[...] nenhum dos princípios da regulação, quer seja o mercado,
quer seja o Estado, quer seja a comunidade, parece capaz de, por si só,
garantir a regulação social...” (p. 89)
“As sociedades capitalistas avançadas parecem bloqueadas,
condenadas a viver do excesso irracional do cumprimento do projecto da
modernidade e a racionalizar num processo de esquecimento ou de autoflagelação
o défice vital das promessas incumpridas.” (p. 90)
“No entanto, a modernização científico-tecnológica e neoliberal
alastra hoje, paradoxalmente, ma mesma medida em que alastra a sua crise,
certificada por aquilo que parecem ser as suas conseqüências inevitáveis o
agravamento da injustiça social através do crescimento imparável e recíproco da
concentração da riqueza e da exclusão social, tanto a nível nacional como a
nível mundial; a devastação ecológica e com ela a destruição da qualidade e
mesmo da sustentabilidade da vida do plano.” (p. 91)
“[...] a modernidade confiou-nos numa ética individualista, uma
micro-ética que no impede de pedir, ou sequer pensar, responsabilidades por
acontecimentos globais...” (p. 91)
“[...] começa a emergir um novo jus-naturalismo assente numa nova
concepção dos direitos humanos e do direito dos povos à autodeterminação, e
numa nova ideia de solidariedade, simultaneamente concreta e planetária.” (p.
91)
“Por um lado, a explosão da realidade mediática e informacional
torna possível uma competência democrática mais alargada. Por outro lado, a
retracção simbólica da produção face ao consumo pode vir a traduzir-se na
redução da semana de trabalho... e de tal redução pode resultar uma maior disponibilidade
para actividades socialmente úteis e para o exercício da solidariedade.” ( p.
92)
“[...] a opção radical e cada vez mais incontornável é entre
enfrentar a possibilidade de este projecto estar exausto, incumprível no que
dele não foi cumprido até agora, ou continuar na sua possibilidade de
regeneração e de continuar a esperar pela sua completude...” (p. 92)
“[...] penso que o que quer que falte concluir na modernidade não
pode ser concluído em termos modernos sob pena de nos mantermos prisioneiros da
mega-armadilha que a modernidade nos preparou: a transformação incessante das
energias emancipatórias em energias regulatórias. Daí a necessidade de pensar
em descontinuidades, em mudanças paradigmáticas e não meramente
subparadigmáticas.” (p. 93)
“A tese principal que aqui defenderei é a seguinte: a ideia
moderna da racionalidade global da vida social e pessoal acabou por se
desintegrar numa miríade de mini-racionalidades ao serviço de uma
irracionalidade global inabarcável e incontrolável.” ( p. 102)
“[...] a pujança do capitalismo produziu dois efeitos
complementares: por um lado, esgotou o projecto da modernidade, por outro lado,
fê-lo de tal modo que se alimenta desse esgotamento e se perpetua nele.” (p.
102)
“A relação entre o moderno e o pós-moderno é, pois, uma relação
contraditória. Não é de ruptura total como querem alguns, nem de linear
continuidade como querem outros. É uma situação de transição em que há momentos
de ruptura e momentos de continuidade.” (p.103)
“[...] são cada vez mais numerosos os grupos sociais a manifestar
um interesse veemente na resolução de alguns problemas, como sejam a catástrofe
ecológica, o perigo da guerra nuclear, a paz, a diferença sexual e racial. E,
no entanto, quanto maior é o interesse destes grupos, mais sentida é a sua
incapacidade para conseguir a sua resolução.” (p. 107)
“Na medida em a resolução destes problemas se prende com a
superação do capitalismo, encontramo-nos numa situação quase diametralmente
inversa da do Manifesto: é grande o nosso interesse nessa transformação mas ao
mesmo tempo sentimos eu temos muito a perder com ela.” (p. 107)
“As mini-racionalidades pós-modernas estão, pois, conscientes
dessa irracionalidade global, mas estão também conscientes que só podem
combater localmente. Quanto mais global for o problema, mais locais e mais
multiplamente locais devem ser as soluções.” ( p. 111)
Capítulo 5
O autor pretende uma separação de poderes,
distinguindo os poderes da sociedade e do Estado, visando assim alcançar o
objetivo do capitalismo, sem que o Estado interfira de maneira negativa na
economia do país, tendo como o maior objetivo entre a separação de econômico e
do político, um desenvolvimento mais rápido, sem que um poder venha a
interferir em outro.
“Nos últimos quinze anos foram
apresentadas duas concepções radicalmente difetentes sobre a natureza do
desenvolvimento capitalista. Segundo uma delas, formulada por I. Wallerstein,
“o capitalismo nunca funcionou, nem pode, em caso algum, funcionar de acordo
com a sua ideologia e, por isso, o triunfo final dos valores capitalistas será
o sinal da crise final do capitalismo enquanto sistema” (1980:374). Ao
contrário, segundo a outra concepção, formulada por A. Hirschman, e já referida
no capítulo anterior, o capitalismo não pode ser criticado por ser repressivo,
alienante ou unidimensional em contraste com os seus valores básicos, porque o
capitalismo realizou precisamente o que se pretendia que se realizasse,
nomeadamente “reprimir certos impulsos e tendências e produzir uma personalidade
humana menos multifacetada, menos imprevisível e mais ‘unidimensional’” (p.
115).
“[...] o Estado é crescentemente ineficaz,
cada vez mais incapaz de desempenhar as funções de que se incumbe. De acordo
com esta concepção, o Estado carece de recursos financeiros (o argumento da
crise financeira) ou de capacidade institucional ( o argumento da incapacidade
da burocracia do Estado para se adaptar ao acelerado ritmo de transformação
social e económica) ou carece ainda dos mecanismos que na sociedade civil
orientam as acções e garantem sua eficácia (o argumento da falta de sinais de
mercado na actuação do Estado)” (p. 116).
“[...] O Estado, enquanto realidade
construída, é a condição necessária da realidade espontânea da sociedade civil”
(p. 118).
“[...] A
sociedade civil é o “sistema de necessidades”, a destruição da unidade da
família e a atomização dos seus membros, em suma, o domínio dos interesses
particularísticos e do egoísmo, em um estádio que será superado pele Estado, o
supremo unificador dos interesses, a ideia universal, a concretização plena da
consciência moral” (p. 120).
“A meu
ver, a separação entre o político e o económico permitiu, por um lado, a
naturalização da exploração económica capitalista, e, por outro, a
neutralização do potencial revolucionário da política liberal, dois processos
que convergiram para a consolidação do modelo capitalista das relações sociais”
(p. 122)
“Por um
lado, nem a sociedade civil pós-burguesa ou antimaterialista, nem a sociedade
civil socialista forma pensadas pelas distinção Estado/sociedade civil tal como
esta se construiu historicamente e merecem por isso consideração separada” (p.
123).
“A meu
ver, o que está verdadeiramente em causa na “reemergência da sociedade civil”
no discurso dominante é um reajustamento estrutural das funções do Estado por
via do qual o intervencionismo social, interclassista, típico do
Estado-Providência, é parcialmente substituído por um intervencionismo
bicéfalo, mais autoritário face ao operariado e a certo sectores das classes
médias (por exemplo, a pequena burguesia assalariada) e mais diligente no
atendimento das exigências macro-económicas da acumulação de capital (sobretudo
do grande capital). É inegável que a “reemergência da sociedade civil” tem um
núcleo genuíno que se traduz na reafirmação dos valores do autogoverno, da
expansão da subjectividade, do comunitarismo e da organização autónoma dos
interesses e dos modos de vida. Mas esse núcleo tende a ser omitido no discurso
dominante ou apenas subscrito na medida em que corresponde às exigências do
novo autoritarismo” (p. 124)
“[...] a
natureza política do poder não é um atributo exclusivo de uma forma de poder. É
antes o efeito global da combinação entre as diferentes formas de poder” (p.
127).
“[...] a
distinção Estado/sociedade civil foi elaborada em função das condições
económicas sociais e políticas dos países centrais num período bem definido da
sua história” (p. 127).
“[...] a
autonomia da sociedade civil nas sociedades centrais significa basicamente que
o espaço de produção moldou, segundo as suas necessidades e os seus interesses,
o espaço da cidadania e, portanto, o Estado” (p. 128).
“Este
isomorfismo foi a base social da chamada racionalidade formal do Estado, da sua
capacidade para exercer eficazmente as suas funções dentro dos limites
hegemonicamente estabelecidos. O isomorfismo significou, por exemplo, que as
três formas de poder – o patriarcado, a exploração e a dominação – pudessem ser
funcionalmente muito diferenciadas e autónomas e, ao mesmo tempo, convergir
substancialmente nos efeitos do exercício dessa autonomia, cada uma delas
confirmando e potenciando a eficácia das restantes” (p. 129).
“A grande
heterogeneidade interna dos vários espaços estruturais e a não correspondência
entre os seus diferentes requisitos de reprodução produziu um défice de
hegemonia, ou, se preferirmos, um défice de objetos nacionais, o qual foi
coberto ou compensado pelo “excesso” de autoritarismo do Estado” (p. 129).
“O
particularismo da actuação do Estado pode ser finalmente uma forma de
interpenetração entre o espaço de cidadania e o espaço mundial e, portanto,
entre dominação e troca desigual nos casos em que os países centrais ou as
organizações internacionais que eles controlam se apropriam de parte da
soberania do Estado nacional” (p. 130).
“O
autoritarismo estatal, por ser relativamente ineficaz, é não só incompleto como
contraditório, o que, por sua vez, contribui para a grande heterogeneidade e
fragmentariedade da actuação do Estado” (p. 131).
Capítulo 6
O assunto aqui proposto, visa uma evolução
do Estado a partir de sua identidade, porém um Estado que não possui uma
identidade própria, como é o caso de Portugal, não terá a mesma evolução dos
países centrais da Europa, ou seja, deve-se re-analizar as culturas de cada
nação, para que assim se alcance uma real identidade.
“O que
sabemos de novo sobre os processos de identidade e identificação, não sendo
muito, é, contudo, precioso para avaliar as transformações por que está a
passar a teoria social em função da quase obsessiva preocupação com a questão
da identidade que tem vindo a dominá-la nos últimos tempos e que, tudo leva a
crer, continuará a dominá-la na década entrante” (p. 136).
“[...]Na
tensão entre subjectividade individual e subjectividade colectiva, a prioridade
é dada à subjectividade individual; na tensão entre subjectividade contextual e
subjectividade abstracta, a prioridade é dada à subjectividade abstracta” (p.
137).
“[...]A
recontextualização da identidade proposta pelo marxismo contra o individualismo
e o estatismo e o estatismo abstractos é feita através do enfoque nas relações
sociais de produção, no papel constitutivo destas, nas ideias e nas práticas
dos indivíduos concretos e nas relações assimétricas e diferenciadas destes com
o Estado” (p. 140).
“[...]sob
a égide do capitalismo, a modernidade deixou que as múltiplas identidades e os
respectivos contextos intersubjectivos que a habitavam fossem reduzidos à
lealdade terminal ao Estado, uma lealdade omnívora das possíveis lealdades
alternativas” (p. 142).
“Tudo
parece ter começado a mudar nos últimos anos e as revisões profundas por que
estão a passar os discursos e as práticas identitárias deixam no ar a dúvida
sobre se a concepção hegemónica da modernidade se equivocou na identificação
das tendências dos processos sociais, ou se tais tendências se inverteram
totalmente em tempos recentes, ou ainda, sobre se está perante uma inversão de
tendências ou antes perante cruzamentos múltiplos de tendências opostas sem que
seja possível identificar os vectores mais potentes. Como se calcula, as
dúvidas são acima de tudo sobre se o que presenciamos é realmente novo ou se é
apenas novo o olhar com que o presenciamos” (p. 143 e 144).
“A
recontextualização e reparticularização das identidades e das práticas está a
conduzir a uma reformulação das interrelações entre os diferentes vínculos
atrás referidos, nomeadamente entre o vínculo nacional classista, racial,
étnico e sexual” (p. 145).
“O que há
de mais característico na actual crise de regulação social é que ela ocorre sem
perda de hegemonia da dominação capitalistas. Por outras palavras, ao contrário
do que se sucedeu em épocas anteriores, a crise de regulação é também uma crise
de emancipação, o que constitui afinal uma outra manifestação do colapso ou da
perversão das energias emancipatórias da modernidade em energias
regulatórias[...]” (p. 146 e 147).
“[...]A
recontextualização das identidades exige, nas condições actuais, que o esforço
analítico e teórico se concentre na dilucidação das especificidades dos campos
de confrontação e de negociação em que as identidades se formam e dissolvem e
na localização dessas especificidades nos movimentos de globalização do capital
e, portanto, no sistema mundial.” (p. 147 e 148)
“As
consequências para a relação colonial decorrentes do caracter semiperiférico de
Portugal não se quadaram pelos aspectos político-económicos nem limitaram o seu
âmbito ao âmbito dessa relação. O decisivo foi a identidade cultural que
engendraram e o modo como esta foi interiorizada pela sociedade portuguesa ao
longo dos últimos cinco séculos” (p. 150).
“Este
défice de diferenciação e de identificação, se, por um lado, criou um vazio
substantivo, por outro, consolidou um forma cultural muito específica, a
fronteira ou zona fronteiriça” (p. 152).
“[...]o
Brasil e os países africanos nunca foram colónias plenas. Fiel à sua natureza
semiperiférica, a cultura portuguesa estendeu a elas a zona fronteiriça que
lhes permitiu usar Portugal como passagem de acesso às culturas centrais, como
aconteceu com as elites culturais do Brasil a partir do século XVIII e com as
africanas sobretudo no nosso século” (p. 154).
“[...]Negativo
é o facto de a política estatal de cultura e propaganda não reconhecer a
riqueza e as virtualidades que se escondem sob essa suposta negatividade. A
riqueza está, acima de tudo, na disponibilidade multicultural da zona
fronteiriça” (p. 155).
Capítulo 7
Na terceira
parte do livro Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade -
Cidadania, Emancipação e Utopia - Boaventura aborda que a judicialização da
sociedade tem aumentado nos países desenvolvidos.
“A sociologia
do direito só se constituiu em ciência social, na acepção contemporânea do
termo, isto é, em ramo especializado da sociologia geral, depois da segunda
guerra mundial. Foi então, que, mediante o uso de técnicas e métodos de
investigação empírica e mediante a teorização própria feita sobre os resultados
dessa investigação, a sociologia do direito verdadeiramente construiu sobre o
direito um objetivo teórico específico, autônomo, quer em relação à dogmática
jurídica, quer em relação à filosofia do direito. [...] ( p. 161)
“[...] as
articulações do direito com as condições e as estruturas sociais em que opera,
o debate sem dúvida polarizador é o que opõe os que defendem uma concepção de
direito enquanto variável dependente, nos termo da qual o direito se deve
limitar a acompanhar e a incorporar os valores sociais e os padrões de conduta
espontânea [...].” (p. 162)
“No primeiro
quartel do nosso século a visão normativa substantivista do direito continuou a
dominar, ainda que com nuances, o pensamento sociológico sobre o direito.
[...]” (p. 163)
“Esta
tradição intelectual diversificada mas em que domina a visão normativista e
substantivista do direito teve uma influência decisiva na constituição do
objetivo da sociologia do direito no pós-guerra. [...]” (p. 163)
“Cabe agora
referir brevemente as condições sociais que, juntamente com as condições
teóricas, possibilitaram a orientação do interesse sociológico para as
dimensões processuais, institucionais e organizacionais do direito. Distingo
duas condições principais. A primeira diz respeito às lutas sociais
protagonizadas por grupos sociais até então em tradição histórica de ação
coletiva de confrontação, os negros, os estudantes, amplos setores da pequena
burguesia em luta por novos direitos sociais no domínio da segurança social,
habitação, educação, transporte, meio ambiente e qualidade de vida, etc.,
movimentos sociais em que em conjugação (por vezes difícil) com o movimento
operário procuraram aprofundar o conteúdo democrático dos regimes saídos do
pós-guerra. [...]” (p. 165)
“A segunda
condição social do interesse da sociologia pelo processo e pelos tribunais é
constituída pela eclosão, na década de 60, da chamada crise da administração da
justiça, uma crise de cuja persistência somos hoje testemunhas. [...]” (p. 165)
“O tema do
acesso à justiça é aquele que mais diretamente equaciona as relações entre o
processo civil e a justiça social, entre igualdade jurídico-formal e
desigualdade sócio-econômica. [...]” (p. 167)
“No princípio
do século, tanto na Áustria como na Alemanha foram frequentes as denúncias da
discrepância entre a procura e a oferta da justiça e foram várias as tentativas
para a minimizar, quer por parte do Estado quer por parte dos interesses
organizados das classes sociais mais débeis. [...]” (p. 167)
[...] a
contribuição da sociologia consistiu em investigar sistemática e empiricamente
os obstáculos ao acesso efectivo à justiça por parte das classes populares com
vista a propor as soluções que melhor os pudessem superar. Muito em geral pode
dizer-se que os resultados desta investigação permitiram concluir que eram três
tipos esses obstáculos: econômicos, sociais e culturais. [...]” (p. 168)
“Estas
verificações têm levado a sociologia judiciária a concluir que as reformas do
processo, embora importantes para fazer baixar os custos econômicos decorrentes
da lentidão da justiça, não são de modo nenhum uma panacéia [...]. (p. 169)
Os estudos
italianos sobre a ideologia da magistratura não assentam no comportamento
decisional, mas antes nos documentos públicos, manifestos, discursos, estatutos
organizativos em que os magistrados, individual ou coletivamente, definiam o
perfil ótimo da função judicial e das suas interações com o poder político e
como sociedade em geral. [...] (p. 173)
“Ainda no
âmbito da administração da justiça como organização profissional, são de
salientar os estudos sobre o recrutamento dos magistrados e a sua distribuição
territorial. Dentro do mesmo quadro teórico, mas de uma perspectiva muito
diferente, são os estudos dirigidos a conhecer as atitudes e as opiniões dos
cidadãos sobre a administração da justiça, sobre os tribunais e sobre os
juízes. [...]” (p. 174)
“Todos esses
estudos têm vindo a chamar a atenção para um ponto tradicionalmente
negligenciado: a importância crucial dos sistemas de formação e de recrutamento
dos magistrados e a necessidade urgente de os dotar de conhecimento culturais,
sociológicos e econômico que os esclareçam sobre as suas próprias opções
pessoais e sobre o significado político do corpo profissional a que pertencem,
com vista a possibilitar-lhes um certo distanciamento crítico e uma atitude de
prudente vigilância pessoal no exercício das suas funções numa sociedade cada
vez mais complexa e dinâmica.” (p. 174)
“A
democratização da administração da justiça é uma dimensão fundamental da
democratização da vida social, econômica e política. Essa democratização tem
duas vertentes. A primeira diz respeito à constituição interna do processo
[...]”. “[...] a segunda vertente diz respeito à democratização do acesso à
justiça. [...]” (p. 177)
“Estas
medidas de democratização, apesar de amplas, têm limites óbvios. A desigualdade
da proteção dos interesses sociais dos diferentes grupos sociais está
cristalizada no próprio substantivo, pelo que a democratização da administração
da justiça, mesmo se plenamente realizada, não conseguirá mais do que igualizar
os mecanismos de reprodução da desigualdade. [...]” (p. 177)
“A diminuição
relativa do contencioso detectada em vários países tem sido considerada
disfuncional, ou seja, como negativa em relação ao processo de democratização
da justiça. [...]” (p. 178)
“A
contribuição maior da sociologia para a democratização da administração da
justiça consiste em mostrar empiricamente que as reformas do processo ou mesmo
do direito substantivo não terão muito significado se não forem contempladas
com outros dois tipos de reforma. Por um lado, a reforma da organização
judiciária, a qual não pode contribuir para a democratização da justiça se ela
própria não for internamente democrática [...]” (p. 180)
“[...] Por
outro lado, a reforma da formação e dos processos de recrutamento dos
magistrados, sem a qual a ampliação dos poderes do juiz propostas em muitas das
reformas aqui referidas carecerá de sentido e poderá eventualmente ser
contraproducente para a democratização da administração da justiça que se
pretende. [...] (p. 180)
“É necessário
aceitar os riscos de uma magistratura culturalmente esclarecida. Por um lado,
ela reivindicará o aumento de poderes decisórios, mas isso como se viu vai no
sentido de muitas propostas e não apresenta perigos de maior se houver um
adequado sistema de recursos. Por outro lado, ela tentará a subordinar a coesão
corporativa à lealdade a ideais sociais e políticos disponíveis na sociedade.
[...]” (p.180-181)
Capítulo 8
“Um pouco por
todo o lado a universidade confronta-se com uma situação complexa: são lhes
feitas exigências cada vez maiores por
parte da sociedade ao mesmo tempo que se tornam cada vez mais restritivas as
políticas de financiamento das suas atividades por parte do Estado”. (p. 187)
“Duplamente
desafiada pela sociedade e pelo Estado, a universidade não parece preparada
para defrontar os desafios, tanto mais do que estes apontam para transformações
profundas e não para simples reformas parcelares.” ( p. 187)
“A
universidade sofre uma crise de legitimidade na medida em que torna socialmente
visível a falência dos objetivos coletivamente assumidos”. ( p. 190)
“A gestão das
tensões produzidas por esta tripla crise das universidades é tanto mais
complexa quando é certo que as contradições entre as funções manifestadas da
universidade “sofrem” a interferência das funções latentes da universidade. (
p. 190)
Esta
distinção entre funções manifestadas e funções latentes com longa tradição na
sociologia, é sobretudo útil para analisar relações intersistemáticas , no caso
entre o sistema universitário e o sistema de ensino superior, ou entre o
sistema educativo, ou ainda entre este o sistema global.” (p. 190-191)
“A
universidade desempenha esta função ao
acolher e ao deixar permanecer no seu seio por um período mais ou menos
prolongado gente que não se arrisca a entrar no mercado de trabalho com
credenciais de pouco valor e que se serve da universidade como compasso de
espera entre conjunturas, usando-a
produtivamente para acumular títulos e qualificações que fortaleçam num momento posterior sua posição no mercado.
“( p. 191)
“Por outro
lado perante uma forte pressão social no sentido de expansão do sistema
universitário, a universidade pode
responder esta pressão mediante o desempenho da função latente de”arrefecimento
das aspirações de filhos e filhas das classes populares”, ou seja,
reestruturando-se de modo a dissimular,
sob a capa de uma falsa democratização, a continuação se um sistema seletivo,
elitista.”( p. 191)
“Um nível
mais geral, a sociologia tem vindo a mostrar como as aparentes contradições
entre funções no seio do sistema educativo podem escolher articulações mais
profundas entre este e outros subsistemas sociais, articulações detectáveis nas
distinções entre funções sociais ou entre funções instrumentais e funções
simbólicas.”( p. 191)
“A resposta
da universidade a esta transformação constitui em tentar compatibilizar no seio
a educação humanística a formação profissional e assim compensar a perda da centralidade cultural provocada pela
emergência da cultura de massas com reforço da centralidade na formação da
força de trabalho especializada.” (p. 196)
“A interpelação da universidade no sentido de
participar ativamente no desenvolvimento tecnológico do sistema produtivo
nacional tem vindo a ser formulada cada vez maior insistência e produz-se em
duas problemáticas principais: a da natureza da investigação básica e a das
virtualidades e limites da investigação aplicada a universidade. “(p. 201)
“O imaginário
universitário é dominado pela idéia de que os avanços de conhecimento
cientifico são propriedade da comunidade cientifica, ainda que a sua autoria
possa se individualizada” (p.203)
“O fato de o
direito e a educação ter vindo a significar, para os filhos das famílias
operarias, o direito de formação técnica profissional é revelador do modo como
a reivindicação democrática da educação foi subordinada, no marco das relações
sociais capitalistas, as exigências do desenvolvimento tecnológico da produção
industrial fortemente sentidas a partir da década de sessenta.” ( p.213).
“Á medida que
a universidade perde centralidade torna-se mais fácil justificar e até impor a
avaliação de seu desempenho. “(p. 216)
“A
universidade tem tendido a ver sobretudo a contradição e a assumir uma posição definitiva,traduzida no accionamento dos vários mecanismos de
dispersão. “((p.216)
“Quanto á
definição do produto da universidade, as dificuldades são o correlato da
multiplicidade de fins que a universidade tem vindo a incorporar e que a cima
fiz referência. Perante tal multiplicidade perguntar-se-á qual é o produto da
universidade ou se quer se fez sentido falar em produto.” (p. 216)
“O perigo da
desvalorização especificidade de universidade torna –se ainda mais evidente
quando se tem em conta o segundo vector, o processo de produção. A universidade
é uma organização de trabalho intensiva, isto é exige uma mobilização
relativamente grande de força de trabalho (docentes, funcionários e estudantes)
quando comparada com a mobilização de outros fatores de produção.”( p. 218)
“Por todas as
razões, a universidade vê-se confrontada com uma crescente pressão para se
deixar avaliar,ao mesmo tempo que se acumulam as condições para que a
titularidade da avaliação” (p.219)
“A
titularidade da avaliação poe-se sobretudo quando se trata de avaliações
globais,avaliações de departamentos, de faculdade ou mesmo de universidade no
seu lado” (p.219)
“ A posição
defensiva “dispersiva” da universidade neste domínio tem uma justificação plausível: a
universidade não tem hoje o poder social político para impor condições que
garantam uma avaliação equilibrada e despreconceituosa do seu desempenho”
(p.220)
“A idéia de
universidade moderna faz parte integrante do paradigma da modernidade.As
múltiplas crises da universidade são afloramentos da crise do paradigma da modernidade e só são,
por isso, resolúveis no contexto da revolução desta última” (p.223)
“A
universidade constiui-se em sede privilegiada e unificada de um saber
privilegiando feito de saberes produzidos
pelas três racionalidades da modernidade: a racionalidade cognitivo-
instrumental das ciências, a racionalidade moral-prática do direito e da ética
e a racionalidade estético-expressiva
das artes e da literatura.” ( p. 223)
“A crise
deste paradigma não pode deixar de acarretar a crise da universidade moderna”
(p.223)
“A
universidade que se quiser pauta pela ciência pós- moderna deverá transformar
seus processos de investigação,de ensino e de extensão seguindo três
princípios: a prioridade da racionalidade moral-prática e da racionalidade
cognitivo; a dupla ruptura epistemológica a criação de um novo senso comum; a
aplicação edificante da ciência no seio de comunidades interpretativas” (p.223)
“A
universidade é talvez a única instituição nas sociedades contemporâneas que pode pensar até ás raízes as razões por que não pode agir em conformidade com o
pensamento. É esse excesso de lucidez que coloca a universidade numa posição
privilegiada para criar e fazer proliferar comunidades interpretativas.” ( p.
225)
“Numa
sociedade cuja quantidade e qualidade de vida assenta em configurações cada vez
mais complexas de saberes, a legitimidade da universidade só será cumprida
quando as actividades, hoje ditas de extensão, se aprofundarem tanto que
desapareçam enquanto tais passem a ser integrante da actividades de
investigação e de ensino.” ( p. 225)
“A diluição
da universidade em tudo que se presente aponta para o futuro da sociedade exige
que a universidade reivindique a autonomia institucional e a especificidade. A
universidade não poderá promover a criação de comunidades interpretativas na
sociedade se não as souber criar no seu interior, entre docentes ,estudantes e
funcionários.” (p. 225)
“A
universidade só deve dispor-se estrategicamente para compensar o inevitável
declínio das suas funções materiais como fortalecimento das suas funções simbólicas.
Numa sociedade de classes, a universidade deve promover transgressões
interclássicas. Numa sociedade á beira do desastre ecológico, a universidade
deve desenvolver uma apurada consciência ecológica. Numa sociedade de festas e
prazeres industrializados, a universidade deve pós modernizar os saberes
festivos da pré- modernidade. O verdadeiro
mercado para o saber universitário reside sempre no futuro.” (p. 226)
“A
universidade deve garantir o desenvolvimento equilibrado das ciências naturais,
das ciências sociais e das humanidades, o que pode envolver no curto prazo, uma
política de favorecimento activo, tanto das ciências sociais, como das
humanidades. Não é viável uma universidade que não disponha de amplas
oportunidades de investigação e ensino nestas áreas ou as não saiba integrar na
investigação e ensino das ciências naturais.” (p.227)
“As
actividades sociais (sobretudo as actividades sociais da natureza), artistas e
escritores devem ser uma presença constante nas actividades curriculares de
investigação e de ensino, pois que as normas sociais da natureza não são
dedutíveis da “ciência normal”. (p. 227)
“As chamadas
actividades de extensão que a universidade assumiu sobre tudo a partir dos anos
sessenta constituem a relação frustrada de um objetivo genuíno. Não devem ser,
por tanto, pura e simplesmente eliminadas.Devem ser transformadas. As
actividades de extensão procuraram “extender” a universidade sem a transformar;
a prestação de serviço a outrem nunca foi concebida como prestação de serviço a
própria universidade tais actividades estiveram, no entanto,ao serviço de um
objetivo genuíno,o descumprir a “responsabilidade social de uma
universidade”,um objetivo cuja genuinidade,de resto, reside no reconhecimento
da tradicional “irresponsabilidade social da universidade”.(p. 229)
“A
universidade deverá criar espaços de interacção com a comunidade envolvente,
onde seja possível identificar eventuais actuações e definir prioridades.
Sempre que possível as actividades de extensão devem incluir estudantes e mesmo
funcionários,devem ser pensadas novas formas de “ serviço cívico” em
associações, cooperativas e comunidades,e etc.,etc. A avaliação destas
actividades devem dar atenção privilegiada ao desempenho do know-how ético, a analise dos impactos e dos
efeitos perversos e sobretudo a aprendizagem concreta de outros saberes no
processo de “ extensão”.(p. 229)
“ A autonomia
institucional da universidade o facto de dispor de uma população significativa
relativamente distanciada das pressões do mercado, das prestações sociais e
políticas,e ainda o facto de essa população estar sujeita a critérios de
eficiência muito específicos e relativamente flexíveis, fazem como fazem com
que a universidade tenha potencialidades para ser um dos equivalentes
funcionais do empreendedor liquidado pela crescente rigidez social.” (p.230)
“A mera
permanência institucional da universidade faz com que a sua existência material
tenha uma dimensão simbólica particularmente tensa. Esta dimensão é um recurso
inestimável, mesmo que os símbolos que se tenham traduzido devam ser
substituídos. Numa sociedade desencantada,o re-encantamento da universidade
pode ser uma das vias para simbolizar o futuro. “(p. 230)
Capítulo 9
Subjectividade, cidadania e emancipação
(p. 235)
“Se é complexa a relação entre
subjectividade e cidadania, é-o ainda mais a relação entre qualquer delas e a
emancipação. Porque a constelação ideológica-cultural hegemónica do fim do
século parece apontar para a reafirmação da subjectividade em detrimento da
cidadania e para a reafirmação desigual de ambas em detrimento da emancipação”
(p. 235).
“Foucault tem certamente razão ao
denunciar o excesso de controle social produzido pelo poder disciplinar e pela
normalização técnico-científica com que a modernidade domestica os corpos e
regula as populações de modo a maximizar a sua utilidade social e a reduzir, ao
mais baixo custo, o seu potencial político. [...] Penso, no entanto, que
Foucault – e, de certo modo, também Adorno e Horkheimer, ainda que com uma
argumentação e um diagnóstico muito distintos – exagera ao inscrever esse
excesso de regulação na matriz do projecto da modernidade, a ponto de fazer
dele não só o único resultado, mas também o único resultado possível deste
projecto. No quarto capítulo procurei mostrar que o projecto da modernidade é
caracterizado, em sua matriz, por um equilíbrio entre regulação e emancipação,
convertido nos dois pilares sobre os quais se sustenta a transformação radical
da sociedade pré-moderna. [...] O equilíbrio pretendido entre a regulação e a
emancipação obtém-se pelo desenvolvimento harmonioso de cada um dos pilares e
das relações dinâmicas entre eles” (p. 235-236).
“À medida que a trajetória da modernidade
se identificou com a trajetória do capitalismo, o pilar da regulação veio a
fortalecer-se à custa do pilar da emancipação num processo histórico não linear
e contraditório, com oscilações recorrentes entre um e outro, nos mais diversos
campos da vida colectiva e sob diferentes formas [...]” (p. 236).
“[...] o desequilíbrio entre a regulação e
emancipação e o consequente excesso de regulação em que veio a saldar-se
resultou de desequilíbrios, tanto no seio do pilar da regulação, como no da
emancipação. [...] Neste capítulo, darei atenção privilegiada ao desequilíbrio
que ocorreu no pilar da regulação” (p. 236-237).
Subjectividade e cidadania na teoria
política liberal (p. 237).
“O desequilíbrio no pilar da regulação
consistiu globalmente no desenvolvimento hipertrofiado do princípio do mercado
em detrimento do princípio do Estado e de ambos em detrimento do princípio da
comunidade” (p. 237).
“A teoria política liberal é a expressão
mais sofisticada deste desequilíbrio. Ela representa, no plano político a
emergência da constelação da subjectividade e, como bem nota Hegel, confronta-se
desde o início com a necessidade de compatibilizar duas subjectividades
aparentemente antagónicas: a subjectividade colectiva do Estado centralizado (Ich-Kollektivität)
e a subjectividade atomizada dos cidadãos autómonos e livres (Ich-
Individualität). A compatibilização é obtida por via da distinção entre
Estado e sociedade civil e do conceito-ficção do contrato social. [...] a
teoria política liberal tem vindo a vigorar até aos nossos dias e pode mesmo
dizer-se que, no período do capitalismo desorganizado em que nos encontramos,
conhece um novo alento, sustentado pela reemergência do liberalismo económico”
(p. 237).
“Em primeiro lugar, o princípio da
subjectividade é muito mais amplo que o princípio da cidadania. A teoria
liberal começa por teorizar uma sociedade onde muitos – no início, a maioria –
dos indivíduos livres e autónomos que prosseguem os seus interesses na
sociedade civil não são cidadãos, pela simples razão de que não podem
participar politicamente na actividade do Estado. As sociedades liberais não
podem ser consideradas democráticas senão depois de terem adoptado o sufrágio
universal” (p. 238).
“Em segundo lugar, o princípio da
cidadania abrange exclusivamente a cidadania civil e política e o seu exercício
reside exclusivamente no voto. Quaisquer outras formas de participação política
são excluídas ou, pelo menos, desencorajadas [...]. A redução da participação
política ao exercício do voto levanta a questão da representação. A
representação democrática assenta na distância, na diferenciação e mesmo na
opacidade entre representantes e representado. [...] Pela própria natureza
desta teoria da representação e também pela interferência dos interesses
próprios dos representantes, como é hoje comumente reconhecido pela teoria
política, o interesse geral não pode coincidir, quase que por definição, com o
interesse de todos” (p. 238).
“Por via do carácter não problemático da
representação e da obrigação política em que ela assenta, a base convencional
do contrato social acaba por conduzir à naturalização da política, à conversão
do mundo numa entidade onde é natural haver Estado e indivíduos e é natural
eles relacionarem-se segundo o credo liberal. A naturalização do Estado é o
outro lado da passividade política dos cidadãos; a naturalização dos indivíduos
é o fundamento da igualdade formal dos cidadãos” (p. 238).
“Este ponto conduz-me à terceira
característica da teoria liberal que pretendo aqui realçar. Esta teoria
representa a total marginalização do princípio da comunidade tal como é definido
por Rousseau. Ao contrário do liberalismo clássico, Rousseau não vê solução
para a antinomia entre a liberdade e autonomia dos cidadãos e o poder de
comando do Estado e, por isso, a sua versão do contrato social é muito
diferente da do contrato social liberal” (p. 239).
“A quarta característica da teoria liberal
é que ela concebe a sociedade civil de forma monolítica. [...] Essa
indiferenciação produz dupla ocultação [...]” (p. 239).
“A primeira ocultação reside em que no
capitalismo há uma forma de associação “especial” que só cinicamente pode
conceber-se como voluntária e onde a formação da vontade assenta na exclusão da
participação da esmagadora maioria dos que nela “participam”, isto é, a empresa
enquanto unidade básica da organização económica da produção capitalista” (p.
239).
“A segunda ocultação reside em que, ao
converter a sociedade civil em domínio privado, a teoria liberal esquece o
domínio doméstico das relações familiares, um domínio perante o qual tanto o
domínio privado da sociedade civil como o domínio público do Estado são, de
facto, domínios públicos” (p. 239).
“A sociedade liberal é caracterizada por
uma tensão entre a subjectividade individual dos agentes na sociedade civil e a
subjectividade monumental do Estado. O mecanismo regulador dessa tensão é o
princípio da cidadania que, por um lado, limita os poderes do Estado e, por
outro, universaliza e igualiza as particularidades dos sujeitos de modo a
facilitar o controle social das suas actividades e, consequentemente, a regulação
social” (p. 240).
“A relação entre cidadania e
subjectividade é ainda mais complexa. Para além das idéias de autonomia e
liberdade, a subjectividade envolve as idéias de auto-reflexividade e de
auto-responsabilidade, a materialidade de um corpo (real ou fictício, no caso
as subjectividade jurídica das “pessoas coletivas”), e as particularidades
potencialmente infinitas que conferem o cunho próprio e único à personalidade.
[...] A igualdade da cidadania colide, assim, com a diferença da
subjectividade, tanto mais que o marco da regulação liberal essa igualdade é
profundamente selectiva e deixa intocadas diferenças [...]” (p. 240).
“Esta tensão entre a subjectividade
individual e individualista e uma cidadania directa ou indirectamente
reguladora e estatizante percorre toda a modernidade. Sob diversas formas e com
diferentes conseqüências [...]. Trata-se, pois, de uma tensão radical que, em
meu entender e conforme defenderei adiante, só é susceptível de superação no
caso de a relação entre a subjectividade e a cidadania ocorrer no marco da
emancipação e não, como até aqui, no marco da regulação” (p. 240).
Subjetividade e cidadania no marxismo (p.
241).
“A alternativa marxista, formulada ainda
no período do capitalismo liberal mas com uma eficácia que se prolonga por todo
o período do capitalismo organizado e mesmo, mais matizada, até o período do
capitalismo desorganizado em que nos encontramos (ou se encontram os países
centrais) merece uma referência especial. [...] o período do capitalismo liberal
é aquele em que se manifesta de forma brutal a liquidação do potencial
emancipatório da modernidade pela via dupla da hegemonização da racionalidade
técnico-científica, no seguimento da segunda revolução industrial, e da
hipertrofia do princípio do mercado em detrimento do princípio do Estado e com
o “esquecimento” total do princípio da comunidade rousseauiana. Mas a verdade é
que é também neste período que se forjam as mais brilhantes construções
emancipatórias da modernidade [...]. É
um período de contradições explosivas entre regulação e emancipação, e a
expressão mais lídima de tais contradições é sem dúvida o marxismo” (p. 241).
“É conhecida a crítica de Marx à
democracia liberal e portanto as idéias de subjectividade e de cidadania que a
constituem. [...] É também sabido que a posição de Marx a respeito da
democracia é, apesar disto, complexa, que admite a possibilidade da conquista
do socialismo por via eleitoral, que salienta a eficácia das lutas democráticas
do operariado inglês na redução do horário de trabalho e que, se teve algum
modelo de democracia, ele foi certamente o da democracia participativa que
subjaz ao princípio da comunidade rousseauiana” (p. 241).
“O que me interessa realçar é que, para
criticar radicalmente a democracia liberal, Marx contrapõe ao sujeito
monumental que é o Estado liberal um outro sujeito monumental, a classe
operária. A classe operária é uma subjectividade colectiva, capaz de
autoconsciência (a classe-para-si), que subsume em si as subjectividades
individuais dos produtores directos. [...] a classe operária é em Marx a classe
universal e a autoconsciência da emancipação socialista” (p. 242).
“Acontece, porém, que, do ponto de vista
das relações entre as particularidades únicas das subjectividades individuais e
a abstracção e universalidade das categorias da sociedade política, a eficácia
subjectiva da classe operária é, ao nível da emancipação, semelhante à da
cidadania liberal, ao nível da regulação. Ou seja, a subjectividade colectiva
da classe tende igualmente a reduzir à equivalência e à indiferença as
especificidades e as diferenças que fundam a personalidade, a autonomia e a
liberdade dos sujeitos individuais. Marx reconheceu isso mesmo mas pensou que
tinha a evolução histórica do capitalismo do seu lado” (p. 242).
“Sabemos hoje que o capitalismo não
proletarizou as populações nos termos previstos por Marx e que, em vez de
homogeneizar globalmente os trabalhadores se alimentou das diferenças
existentes ou, quando as destruiu, criou outras em seu lugar” (p. 242).
“Com Lenine e no seguimento lógico de
Marx, a classe operária dá origem a um outro sujeito monumental, o partido
operário. [...] a titularidade política do partido, nos termos em que foi
formulada, tendeu a destruir a titularidade política individual da cidadania.
Isto significa que a tensão acima referida entre subjectividade individual e
cidadania foi falsamente resolvida pela destruição de ambas. [...] Não admira,
pois, que o modelo marxista-leninista viesse a redundar numa hipertrofia total
do princípio do Estado. [...] o marxismo, ao contrário, procurou construir a
emancipação à custa da subjectividade e da cidadania e, com isso, arriscou-se a
sufragar o despotismo, o que veio de fato a acontecer” (p. 242-243).
“Neste domínio, o erro de Marx foi pensar
que o capitalismo, por via do desenvolvimento tecnológico das forças
produtivas, possibilitaria ou mesmo tornaria necessária a transição para o
socialismo. Como se veio a verificar, entregue a si próprio, o capitalismo não
transita para nada senão para mais capitalismo. A equação automática entre
progresso tecnológico e progresso social desradicaliza a proposta emancipadora
de Marx e torna-a, de facto, perversamente gémea da regulação capitalista” (p.
243).
A emergência da cidadania social (p. 243).
“O segundo período do capitalismo nos
países centrais, o capitalismo organizado, caracteriza-se pela passagem da
cidadania cívica e política para o que foi designado por “cidadania social”,
isto é, a conquista de significativos direitos sociais” (p. 243).
“Segundo Marshall, na linha da tradição
liberal, a cidadania é o conteúdo da pertença igualitária a uma dada comunidade
política e afere-se pelos direitos e deveres que o constituem e pelas
instituições que dá azo para ser social e politicamente eficaz. A cidadania não
é, por isso, monolítica; é constituída por diferentes tipos de direitos e
instituições; é produto de histórias sociais diferenciadas protagonizadas por
grupos sociais diferentes. [...] Por último, os direitos sociais só se
desenvolvem no nosso século e, com plenitude, depois da Segunda Guerra Mundial;
têm como referência social as classes trabalhadoras e são aplicados através de
múltiplas instituições que, no conjunto, consistem o Estado-Providência” (p.
243-244).
“Um dos principais méritos da análise de
Marshall consiste na articulação que opera entre cidadania e classe social e
nas consequências que dela retira para caracterizar as relações tensionais
entre cidadania e capitalismo. [...] no período do capitalismo organizado, a
cidadania social, porque se ancorou socialmente nos interesses das classes
trabalhadoras e porque serviu estes em grande medida através de transferências
de pagamentos, colidiu significativamente com o princípio do mercado,
conduzindo a uma relação mais equilibrada entre o princípio do Estado e o
princípio do mercado e, com ela, a uma nova estrutura da exploração
capitalista, precisamente o capitalismo organizado” (p. 244).
“Este maior equilíbrio entre o Estado e
mercado foi obtido por pressão do princípio da comunidade enquanto campo e
lógica das lutas sociais de classe que estiveram na base da conquista dos
direitos sociais. A comunidade assenta na obrigação política horizontal entre
indivíduos ou grupos sociais e na solidariedade que dela decorre, uma
solidariedade participativa e concreta, isto é, socialmente contextualizada”
(p. 244).
“Se a classe operária não foi o sujeito
monumental da emancipação pós-capitalista, foi sem dúvida o agente das
transformações progressistas (emancipatórias, neste sentido) no interior do
capitalismo” (p. 244).
“Para a compreensão do tempo presente é,
no entanto, importante ter em conta que as lutas operárias pela cidadania
social tiveram lugar no marco da democracia liberal e que por isso a obrigação
política horizontal do princípio da comunidade só foi eficaz na medida em que
se submeteu à obrigação política vertical entre cidadão e Estado. [...]
Politicamente, este processo significou a integração política das classes
trabalhadoras no Estado capitalista e, portanto, o aprofundamento da regulação
em detrimento da emancipação. [...] Daí que o capitalismo se tenha transformado
profundamente, para, no “fim” do processo da sua transformação, estar mais
hegemónico do que nunca” (p. 245).
“Em face disto, não surpreende que neste
período se tenha agravado a tensão entre subjectividade e cidadania. [...]
Enfim, um modelo de desenvolvimento que transformou a subjectividade num
processo de individuação e numeração burocrático e subordinou a Lebenswelt
às exigências de uma razão tecnológica que converteu o sujeito em objecto de si
próprio” (p. 245)
Subjectividade e cidadania em Marcuse e
Foucault (p. 246)
“A relação entre a hipertrofia estatizante
e consumista e o definhamento subjectividade foi denunciada pela primeira vez
por Marcuse. [...] A integração política social e cultural do operariado na
reprodução do capitalismo torna inviável qualquer processo de emancipação de
base classista. A emancipação a conquistar é a do indivíduo e da sua
subjectividade. [...] Nos termos dela, a razão tecnológica que preside ao
desenvolvimento do capitalismo conduz inelutavelmente ao sacrifício da
subjectividade individual na medida em que é incapaz de satisfazer todas as
necessidades [...]” (p. 246).
“Melhor que ninguém, Foucault analisou o
processo histórico do desenvolvimento da cidadania em detrimento do da
subjectividade, para nos permitir a conclusão de que a cidadania sem
subjectividade conduz à normalização, ou seja, à forma moderna de dominação
cuja eficácia reside na identificação dos sujeitos com os poderes-saberes que
neles (mais do que sobre eles) são exercidos” (p. 246).
“Concordando com muito da crítica de
Foucault, não partilho da radicalidade da conclusão a que ele chega. Para
Foucault, não há tensão entre cidadania e sibjectividade porque a cidadania, na
medida em que constitui na institucionalização das disciplinas, criou a
subjectividade à sua imagem e semelhança. [...] De facto, segundo ele, o poder
jurídico-político, sediado no Estado e nas instituições não tem cessado de
perder importância em favor do poder disciplinar. A cidadania é, pois, para
Foucault, um artefacto deste poder mais do que do conjunto dos direitos
cívicos, políticos e sociais concedidos pelo Estado ou a ele conquistados” (p.
247).
“Em meu entender, o processo histórico da
cidadania e o processo histórico da subjectividade são autónomos ainda que,
como tenho vindo a defender intimamente relacionados” (p. 247).
“Acresce que, do ponto de vista da
emancipação, é possível pensar em novas formas de cidadania (colectivas e não
individuais; menos assentes em direitos e deveres do que em formas e critérios
de participação) não-liberais e não-estatizantes, em que seja possível uma
relação mais equilibrada com a subjectividade. Mesmo assim, estas novas formas
de cidadania não nos devem fazer esquecer que o Estado ocupa posição central
(porque exterior) na configuração das relações sociais de produção capitalista
e que essa posição, ao contrário do que afirma Foucault, tem vindo a
fortalecer-se com o desenvolvimento do capitalismo” (p. 247).
A crise da cidadania social (p. 247).
“No final dos anos sessenta, nos países
centrais, o processo histórico do desenvolvimento da cidadania social sofre uma
transformação cuja verdadeira dimensão só veio a revelar-se na década seguinte.
Dois fenómenos marcaram essa transformação: a crise do Estado-Providência e o
movimento estudantil” (p. 247).
“[...] a crise do Estado-Providência assenta
basicamente na crise do regime de acumulação consolidado no pós-guerra, o
“regime fordista”, como hoje é conhecido. [...] acoplada à integração maciça
dos trabalhadores na sociedade de consumo através de uma certa indexação dos
aumentos de salários aos ganhos de produtividade” (p. 248).
“Como referi, a classe operária, através
dos sindicatos e partidos operários, teve um papel central na configuração
deste compromisso, também conhecido por compromisso social-democrático para dar
conta que as transformações socializantes do capitalismo neste período (o
“capitalismo organizado”) foram obtidas à custa da transformação socialista da
sociedade, reivindicada no início deste segundo período do capitalismo como a
grande meta do movimento operário” (p. 248).
“A crise do regime fordista e das
instituições sociais e políticas em que ele se traduziu assentou, em primeira
linha, numa dupla crise de natureza económica-política, na crise da
rentabilidade do capital perante a relação produtividade-salários e a relação
salários directos-salários indirectos, e na crise da regulação nacional, que
geria eficazmente até então essas relações, perante a internacionalização dos
mercados e a transnacionalização da produção” (p. 248).
“Mas a crise do fordismo ou do capitalismo
organizado teve também uma dimensão cultural ou política-cultural e, em meu
entender, a reavaliação e a revalidação desta dimensão é de crucial importância
para definir as alternativas emancipatórias dos anos noventa. [...] O
compromisso social-democrático amarrou de tal modo os trabalhadores e a
população em geral à obsessão e às rotinas da produção e do consumo que não
deixou nenhum espaço para o exercício da autonomia e da criatividade, com as
manifestações daí decorrentes [...]. A cidadania social e o seu
Estado-Providência transformaram a solidariedade social numa prestação
abstracta de serviços burocráticos benevolentemente repressivo [...]. Por
último o compromisso social-democrático, já de si assenta numa concepção
restrita (liberal) do político, acabou, apesar das aparências em sentido
contrário, por reduzir ainda mais o campo político. A diferença qualitativa
entre as diferentes opções política reduziu até quase à irrelevância. A
representação democrática perdeu o contacto com os anseios e as necessidades da
população representada e dez-se refém dos interesses corporativos dos
poderosos” (p. 248-249).
“Como sabemos, o movimento estudantil
dos anos sessenta foi o grande articulador da crise político-cultural do
fordismo e a presença nele, bem visível, de resto, da crítica marcusiana é a
expressão da radicalidade da confrontação que protagonizava. São três as
facetas principais dessa confrontação. [...] opõe ao produtivismo e ao
consumismo uma ideologia antiprodutivista e pós-materialista. [...] identifica
as múltiplas opressões do quotidiano, tanto ao nível de produção [...] como da
reprodução social [...] e propõe-se alargar a elas o debate e a participação
política. [...] declara o fim da hegemonia operária nas lutas pela emancipação
social e legitima a criação de novos sujeitos sociais de base transclasista”
(p. 249).
“O triunfo ideológico da subjectividade
sobre a cidadania teve obviamente os seus custos. O afã na busca de novas
formas de cidadania nãos hostis à subjectividade levou a negligenciar quase
totalmente a única forma de cidadania historicamente constituída, a cidadania
de origem liberal. Essa negligência revelou-se fatal para o movimento
estudantil [...] esse desarme organizacional facilitou a expansão capilar da
nova cultura política instituída pelo movimento estudantil [...]. Aliás, a
herança não reside apenas na cultura política, reside também nas formas
organizativas e na base social destas. A partir daí os partidos e os sindicatos
tiveram de confrontar-se permanentemente com as formas organizativas dos novos
movimentos sociais, tal como a parir daí o complexo marshalliano cidadania social-classe
social, não mais se pode repor como anteriormente” (p. 249-250).
As duas últimas décadas: experimentação e
contradição (p. 250).
“As duas últimas décadas foram [...]. Por
um lado, foi um período em que o capital começou a definir uma resposta aos
desafios dos anos sessenta. Trata-se de uma resposta [...] que assenta mais do
que nunca na conversão do “sistema mundial” em espaço global de acumulação. O
perfil geral desta resposta é conhecido, mas o seu alcance está ainda por
definir. [...] Por outro lado, as duas últimas décadas foram anos de grande
experimentação social, de formulação de alternativas mais ou menos radicais ao
modelo de desenvolvimento económico e social do capitalismo e de afirmação
política de novos sujeitos sociais, bem simbolizada nos novos movimentos
sociais, sobretudo nos países centrais, e nos movimentos populares de toda a
América Latina” (p. 250).
“Por último, a última década testemunhou o
colapso das sociedades comunistas do Leste Europeu [...]. [...] este processo significa,
pelo menos na aparência, a revalidação do modelo capitalista do desenvolvimento
ecónomico e social e a sua afirmação como o único modelo viável da modernidade”
(p. 250).
As respostas do capital: difusão social da
produção e isolamento político do trabalho (p. 251).
“Os últimos vinte anos foram muito ricos
em soluções capitalistas novas para responder eficazmente os desafios dos anos
60. É possível agrupar essas soluções em dois grandes conjuntos: a difusão
social da produção e o isolamento político das classes trabalhadoras enquanto
classes produtoras” (p. 251).
“A difusão social da produção
assume várias formas. É, antes de mais, a descentralização da produção através
da transnacionalização da produção (a “fábrica difusa”), a fragmentação geográfica
e social do processo de trabalho [...]. A despolitização das opções neste
domínio – o único nacionalismo possível é o da luta pelas condições de
desnacionalização da regulação económica e social – envolve também a sua
naturalização, ou seja, a idéia de que as opções optam entre muito pouco, dado
que os imperativos multinacionais são categóricos, pertencem à natureza própria
da acumulação neste período e nenhuma economia nacional pode ter a veleidade de
se furtar a ela ou ficar de fora” (p. 251).
“[...] a difusão social da produção tem
ainda um terceiro aspecto, mais complexo mas talvez de maior importância no
futuro próximo: a crescente confusão ou indiferenciação entre produção e
reprodução” (p. 251-252).
“As lutas pela cidadania social no segundo
período (capitalismo organizado) tiveram por objectivo explícito vincar que
entre produção e reprodução havia uma conexão económica íntima mas que, para
além dela, a desconexão era total. [...] A conexão económica residia em que a
partilha nos ganhos de produtividade, os salários indirectos e o
Estado-Providência deveriam garantir por si a reprodução social. [...] Esta
conexão permitia aos trabalhadores planear a sua reprodução planear a sua
reprodução social e a da sua família em total liberdade e segurança, sem
qualquer sujeição aos ciclos económicos, ou às exigências empresariais” (p.
252).
“Embora este objectivo tenha sido obtido
durante algum tempo por largos sectores das classes trabalhadoras dos países
centrais, foi precisamente contra ele que se insurgiu o movimento estudantil.
[...] A conexão económica, longe de criar autêntica autonomia e liberdade,
criou dependência em relação ao Estado burocrático e às rotinas do consumo
[...]. Nestes termos, a produção e a reprodução mantiveram-se materialmente
distintas mas passaram a ser simbolicamente isomórficas” (p. 252).
“A reestruturação do capital neste período
aproveitou-se, de algum modo, desta crítica para alterar, em seu favor, a
relação entre produção e reprodução social. Por um lado, com os cortes no
orçamento social do Estado-Providência e a quebra da indexação entre
produtividade e salário, procurou eliminar ou, pelo menos, atenuar a conexão
económica. Por outro lado, através da difusão social da produção, procurou
aprofundar outras conexões entre produção e reprodução. [...] a generalização
das formas de pluriactividades tornou mais complexa e difícil a distinção entre
tempo vital e tempo de trabalho e o mesmo se sucedeu através da degradação da
segurança social, que tornou mais problemática a fase pós-produtiva da vida”
(p. 252-253).
“A promiscuidade entre produção e
reprodução social tira razão ao argumento de Haberman (1982) e de Offe (1987)
segundo o qual as sociedades capitalistas passaram a ter um paradigma de
trabalho para um paradigma de interacção. [...] Tem, pois, razão Schwengel
quando afirma que a sociedade contemporânea oscila entre a utopia do trabalho
concreto e a experiência do “fim da sociedade do trabalho” (1988:345)” (p.
253).
“O isolamento político das classes
trabalhadoras na produção está obviamente ligado aos processos que acabei de
descrever e constitui, de facto, a outra fase da difusão social da produção. As
várias dimensões da difusão social da produção contribuíram, cada uma a seu
modo, para a transformação do operariado em mera força de trabalho. São
particularmente importantes neste domínio as diferentes estratégias de
flexibilização ou melhor de precarização da relação salarial que um pouco por
toda parte tem vindo a ser adoptadas [...]. Todas estas formas de relação salarial
visam sujeitar os ritmos da reprodução social aos ritmos da produção” (p.
253-254).
“A coexistência de várias relações
salariais e a segmentação dos mercados de trabalho têm vindo a produzir uma
grande fragmentação e heterogeneização do operariado, o que torna mais difícil
a macro-negociação colectivas e coloca as organizações sindicais numa posição
de fraqueza estrutural [...]. Para isso têm também contribuído as
transformações operados do próprio processo de trabalho [...]. No seu conjunto,
estas transformações retiram sentido à unidade dos trabalhadores e promovem a
integração individual e individualmente negociada dos trabalhadores na empresa.
Por todas estas vias, a integração cada vez mais intensa dos trabalhadores na
produção corre de par com a progressiva desintegração política do movimento
operário. Isolados, os trabalhadores não são classe operária, são força de
trabalho. Talvez isto explique em parte a pouca resistência ou a pouca eficácia
da resistência das organizações sindicais perante o processo de degradação da
relação salarial” (p. 254).
“O outro aspecto não menos importante é a
degradação dos salários indirectos e, consequentemente, das prestações e
serviços do Estado-Providência” (p. 254).
“A difusão social da produção e o isolamento
político das classes trabalhadoras nestas duas últimas décadas têm sido
acompanhados no plano político-cultural por uma constelação ideológica em que
se misturam o renascimento do mercado e da subjectividade como articuladores
nucleares da prática social. A idéia de mercado e as que gravitam na sua órbita
[...] têm desempenhado um papel decisivo na desarticulação da rigidez da
relação salarial herdada no período anterior e no desmantelamento relativo do
Estado-Providência. Assistimos à colonização do princípio do Estado por parte
do princípio do mercado, uma colonização que envolve por vezes a introdução da
concorrência entre instituições do Estado na prestação de serviços a outras
instituições do Estado. [...] Trata-se de uma situação muito diferente de do
período do capitalismo liberal [...]. Diferente porque, no período do
capitalismo liberal, não foi necessário privatizar o sector social do Estado,
[...]; diferente porque, no período do capitalismo desorganizado, o predomínio
do princípio do mercado tem uma forte dimensão ideológica que ajuda a legitimar
a relativa do Estado da prestação da providência social, ao mesmo tempo que
oculta o fortalecimento, aparentemente contraditório, da intervenção do Estado
na área económica [...]. Por último, o predomínio do princípio do mercado é
agora diferente, porque, ao contrário do que se sucedeu no período do
capitalismo liberal, faz apelo ao princípio da comunidade” (p. 254-255).
“Apesar de todas as diferenças, o regresso
do princípio do mercado nos últimos vinte anos representa a revalidação social
e política do ideário liberal e, consequentemente, a revalorização da
subjectividade em detrimento da cidadania. [...] A aspiração de autonomia,
criatividade e reflexividade é trasmutada em privatismo, dessocialização e
narcisismo, os quais, acoplados à vertigem produtivista, servem para integrar,
como nunca, os indivíduos na compulsão consumista. Tal integração, longe de
significar uma cedência materialista, é vivida como expressão de um novo
idealismo, um idealismo objectístico” (p. 255).
“Nessa nova configuração simbólica, a
hipertrofia do princípio do mercado assinala um novo desequilíbrio entre
regulação e emancipação. Desta vez, o excesso de regulação reside em que
subjectividade sem cidadania conduz ao narcisismo e ao autismo” (p. 256).
Os novos movimentos sociais (p. 256).
“Defendi acima que as duas últimas décadas
foram experimentais. Foram também contraditórias. O fato de até agora não se
ter estabilizado nos países centrais um novo modo de regulação social em
substituição do modo fordista tem levado a que as soluções experimentais, além
de empíricas (o adhocismo) e instáveis (o stop and go, não só no
domínio económico, como também nos domínios social e cultural), sejam
contraditórias. Não admira, pois, que o excesso de regulação acabado de referir
tenha convivido nos últimos vinte anos com movimentos emancipatórios poderosos,
testemunhos de emergência de novos protagonistas num renovado espectro inovação
e transformação sociais. [...] É assim socialmente possível viver sem
duplicidade e com igual itensidade a hegemonia do mercado e a luta contra ela.
A concretização dessa possibilidade depende de muitos factores. É, por exemplo,
seguro dizer que a difusão social da produção contribuiu para desolcultar novas
formas de opressão e que o isolamento político do movimento operário facilitou
a emergência de novos sujeitos sociais e de novas práticas de mobilização
social” (p. 256).
“A sociologia da década de oitenta foi
dominada pela temática dos novos sujeitos sociais e dos novos movimentos
sociais (NMSs)” (p. 256).
“Interessa apenas referi-lo brevemente na
medida em que intersecta os dois pólos estruturantes do presente texto: a
relação entre regulação e emancipação e a relação entre subjectividade e
cidadania” (p. 257)
“A identificação da intersecção dos novos
movimentos sociais nesta dupla relação é tarefa difícil, quanto mais não seja
porque é grande a diversidade destes movimentos e é debatível se essa
diversidade pode ser reconduzível a um conceito ou a uma teoria sociológica
únicos. [...] Se nos países centrais a enumeração dos novos movimentos sociais
inclui tipicamente os movimentos ecológicos, feministas, pacifistas,
antiracista, de consumidores, e de auto-ajuda a enumeração na América Latina
[...] é bastante mais heterogéna. Tendo em vista o caso brasileiro,
Scherer-Warren e Krischke destacam a “parcela dos movimentos sociais urbanos
propriamente ditos, os CEBs (Comunidade Eclesiais de Base organizadas a partir
dos adeptos da Igreja Católica), o novo sindicalismo urbano e, mais
recentemente, também rural, o movimento feminista, o movimento ecológico, o
movimento pacifista em fase de organização, sectores de movimentos de jovens e
outros” (Scherer-Warren e Krischke, 1987:41)” (p. 257).
“[...] Por agora, servem-nos para
identificar alguns dos factores novos que os movimentos sociais das duas
últimas décadas vieram introduzir na relação regulação-emancipação e na relação
subjectividade-cidadania e para mostrar que esses factores não estão presentes
do mesmo modo em todos os NMSs em todas as regiões do globo” (p. 258).
“A novidade maior dos NMSs reside em que
constituem tanto uma crítica da regulação social capitalista, como uma crítica
da emancipação social socialista tal como ela foi defendida pelo marxismo.
[...] os NMSs denunciam, com uma radicalidade sem precedentes, os excessos de
regulação da modernidade” (p. 258).
“Nestes termos, as denúncias de novas
formas de opressão implica da denúncia das teorias e dos movimentos
emancipatórios que as passaram em claro, que as negligenciaram, quando não
pactuaram mesmo com elas. Implica, pois, a crítica do marxismo e do movimento
operário tradicional, bem como factor de emancipação (o bem-estar material, o
desenvolvimento tecnológico das forças produtivas) transforma-se nos NMSs em
factor de regulação. [...] a emancipação por que se luta visa transformar o
quotidiano das vítimas da opressão aqui e agora e não num futuro longínquo. A
emancipação ou começa hoje ou não começa nunca” (p. 258-259).
“[...] A globalização ao nível da
regulação é tornada possível pela crescente promiscuidade entre produção e
reprodução social atrás analisada. Se o tempo vital e o tempo de trabalho
produtivo se confundem cada vez mais, as relações sociais da produção
descaracterizam-se enquanto campo privilegiado de dominação e hierarquização
social e o relativo vazio simbólico assim criado é preenchido pelas relações
sociais de reprodução social (na família e nos espaços públicos) e pelas
relações sociais na produção” (p. 259).
“Qualquer destes dois últimos tipos de
relações sociais tem vindo a adquirir crescente visibilidade social nos últimos
vinte anos. Mas, contraditoriamente, esse processo de viabilização social só é
possível ancorado da lógica (que não na forma) e na historicidade da dominação
própria da relação das relações de produção. Ou seja, a difusão social da
produção, ao mesmo tempo que conduz ao desprivilegiamento relativo da forma de
dominação especifica das relações de produção [...], possibilita que a lógica
desta [...] se difunda socialmente em todos os setores da vida social e, por
esta via, se globalize” (p. 259).
“O processo de globalização no campo da
regulação é também um processo de lcalização. [...] Daí que o quotidiano – que
é, por excelência, o mundo da intersubjectividade – seja, a dimensão
espácio-temporal da vivência dos excessos de regulação e das opressões
concretas em que eles se desdobram” (p. 260).
“Ao nível da emancipação, ocorre também um
fenómeno correspondente de globalização-localização. [...] Porque os momentos
são “locais” de tempo e de espaço, a fixação momentânea da globalidade da luta
é também uma fixação localizada e é por isso que o quotidiano deixa de ser uma
fase menor ou um hábito descartável para passar a ser o campo privilegiado de
luta por um mundo e uma vida melhores. Perante a transformação do quotidiano
numa rede de sínteses momentâneas e localizadas de determinações globais e
maximalistas, o senso comum e o senso dia-a-dia vulgar, tanto público como
privado, tanto produtivo como reprodutivo, desvulgarizam-se e passam a ser
oportunidades únicas de investimento e protagonismo pessoal e grupal. Daí a
nova relação entre subjectividade e cidadania” (p. 260-261).
Subjectividade e cidadania nos novos
movimentos sociais (p. 261).
“Um dos mais acesos debates sobre os NMSs
incide no impacto na relação subjectividade-cidadania. Segundo, uns, os NMSs
representam a afirmação da subjectividade perante a cidadania. A emancipação
por que lutam não é política mas antes pessoal, social e cultural. As lutas em
que se traduzem pautam-se por formas organizativas (democracia participativa)
diferentes das que presidiram às lutas pela cidadania (democracia
representativa). Os protagonistas dessas lutas [...] são grupos sociais, ora
maiores, ora menores que classes, com contornos
mais ou menos definidos em vista de interesses coletivos por vezes muito
localizados mas potencialmente universalizáveis. As formas de opressão e de
exclusão contra as quais lutam não podem, em geral, ser abolidas com a mera
concessão de direitos, como é típico da cidadania [...] Por último, os NMSs
ocorrem no marco da sociedade civil e não no marco do Estado e em relação ao
Estado mantêm uma distância calculada, simétrica da que mantêm em relação aos partidos e aos sindicatos
tradicionais ” (p. 261).
“Esta concepção, que faz assentar a
novidade dos movimentos sociais na afirmação da subjectividade sobre a
cidadania, tem sido amplamente criticada. A crítica mais frontal provém
daqueles que contestam precisamente a novidade dos NMSs” (p. 262).
“Em minha opinião, não é preciso recusar a
novidade dos NMSs para criticar as ilações que dela retira a primeira
concepção. A novidade dos NMSs tanto no domínio da ideologia como no das formas
organizativas, parece-me evidente, ainda que não deva ser defendida em termos
absolutos. Tal como Scott (1990), duvido que os NMSs possam na sua totalidade
ser explicados por uma teoria unitária. Basta ter em mente as diferenças
significativas em termos de objectivos de ideologia e de base social entre os
NMSs dos países centrais e os da América Latina” (p. 262).
“A novidade dos NMSs não reside na recusa
da política mas, ao contrário, no alargamento da política para além do marco
liberal da distinção entre Estado e sociedade civil. Os NMSs partem do
pressuposto de que as contradições e as oscilações periódicas entre o princípio
do Estado e o princípio do mercado são mais aparentes do que reais, na medida
em que o trânsito histórico do capitalismo é feito de uma interpretação sempre
crescente entre os dois princípios [...]” (p. 263).
“Apesar de estar muito colonizado pelo
princípio do Estado e pelo princípio do mercado, o princípio da comunidade
rousseauina é o que tem mais virtualidades para fundar as novas energias
emancipatórias. A idéia de obrigação política horizontal, entre cidadãos, e a
idéia da participação e da solidariedade concretas na formulação da vontade
geral são as únicas suscetíveis de fundar uma nova cultura política e, em
última instância, uma nova qualidade de vida pessoal e colectiva assentes na
autonomia e no autogoverno, na descentralização e na democracia participativa,
no cooperativismo e na produção socialmente útil. [...] Sem postergar as
conquistas da cidadania social, como pretende afinal o liberalismo político-económico,
é possível pensar r organizar novos exercícios de cidadania – porque as
conquistas da cidadania civil, política e social não são irreversíveis e estão
longe de ser plenas – e novas formas de cidadania – colectivas e não meramente
individuais; assentes em formas político-jurídicas que, ao contráriodos
direitos gerias e abstratos, incentivem a autonomia e combatam a dependência
burocrática, personalizem e localizem as competências interpessoais e
colectivas em vez de as sujeitar a padrões abstractos” (p. 263-264).
“[...] Dialecticamente, esta novidade nas
estruturas organizativas e no estilo de acção política é o elo que liga os NMSs
aos velhos movimentos sociais. Através dela continuam a aprofundar a luta pela
cidadania, não sendo por isso correcto justificar com ela um pretenso
desinteresse pelas questões da cidadania nos NMSs” (p. 264).
“Não enjeito uma certa normatividade nesta
análise e, num campo de opções em aberto, a preferência pela opção mais
optimista ou promissora. São conhecidas as limitações das NMSs e começa hoje a
ser comum afirmar-se que o seu momento de apogeu já passou. E debatível se a
relação tensa ou de distancia calculada entre a democracia representativa e os
NMSs tem sido benéfica ou prejudicial para estes últimos” (p. 264).
“Dada a grande diversidade dos NMSs, é
impossível falar de um padrão único de relações entre democracia representativa
(quando esta existe, pois, na América Latina a luta dos NMSs tem sido muitas
vezes por ela) e a democracia participativa. O facto de essas relações,
quaisquer que sejam, serem sempre caracterizadas pela tensão e pela convivência
difícil entre as duas formas de democracia não me parece em si mesmo negativo,
uma vez que é dessa tensão que se têm libertado muitas vezes as energias
emancipatórias necessárias à ampliação e redefinição do campo político” (p.
265).
Os NMSs e o sistema mundial: Brasil,
África e Portugal (p. 265).
“Estas transformações ocorrem
desigualmente no sistema mundial, pelo que a identidade dos NMSs não pode
deixar de ser parcial. Se nos países centrais combinam democracia participativa
e valores ou reivindicações pós-materialistas, na América Latina combinam, na
maioria das situações, democracia participativa com valores ou reivindicações
de necessidades básicas. Tão importante quanto a análise as identidade parcial
dos NMSs é a análise da desigualdade da sua ocorrência de país para pais e a
diversidade entre elas dentro de cada país” (p. 265).
“Do que não restam dúvidas, porém, é que os NMSs, nos países onde
ocorreram com mais intensidade, significaram uma ruptura com as formas
organizativas e os estilos políticos hegemónicos e o seu impacto na cultura e
na agenda política desses países transcende em muito as vicissitudes de
trajectórias dos movimentos em si mesmo. O impacto residiu especificamente numa
tentativa de inverter o trânsito da modernidade para a regulação e para o
excesso de regulação, como esquecimento essencial da emancipação, ao ponto de
fazer passar pó emancipação o que não era, afinal, senão regulação sob outra
forma. A emancipação pôde, assim, regressar aos dizeres e fazeres da
intersubjectividade, da socialização, da inculcação cultural e da prática
política. O impacto residiu também numa tentativa de procurar um novo
equilíbrio entre subjectividadee cidadania. Se na aparência alguns NMSs se
afirmaram contra a cidadania, foi em nome de uma cidadania de nível superior
capaz de compatibilizar o desenvolvimento pessoal com o clectivo e fazer a da
“sociedade civil” uma sociedade política onde o Estado seja um autor
privilegiado mas não o único. Por todas estas razões, os NMSs não podem deixar
de ser uma referência central quando se trata de imaginar os caminhos da
subjectividade, da cidadania e da emancipação nos anos noventa” (p. 268-269).
Os anos noventa
O Autor
observa que é natural que os anos noventa tragam o aprofundamento, após os
experimentos das duas décadas anteriores, a menos que as futuras sociedades
façam da instabilidade das novas experiências a única forma viável de
estabilidade.
“É também
possível pensar, como quer algum pós-mordenismo, que o que houve de novo nestes
últimos vinte anos não cessará de se repetir, como novo, nos anos vindouros,
não nos restando outra atitude senão perder o hábito de imaginar outras
possibilidades para além do que existe e celebrar o que existe como sendo o
conjunto de todas as possibilidades imagináveis” (p. 269).
Esta teoria
se apresenta como indeterminista com relação ao presente e determinista com
relação ao futuro, porém não nos impede de imaginarmos outras teorias que
comportema diferença do futuro e a diferença atual em relação a ele.
“Se fosse
correcto falar de “patologias da modernidade”, diríamos que elas consistiram
até agora em subsínteses entre subjectividade, cidadania e emancipação que
resultaram em excessos de regulação, os quais, aliás, se insinuaram por vezes
sob a forma de emancipações, posteriormente denunciadas como falsas” (p. 269).
Os excessos
de regulação são concebidos pelo Autor como constelações sócio-políticas que se
mantiveram aquém de uma síntese alcançada entre subjetividade, cidadania e
emancipação, conferindo-lhe uma versão desfigurada, truncada e perversa.
“[...] a
tarefa da teoria crítica pós-moderna consiste em apontar de novo os caminhos da
síntese [...] O esforço teórico a empreender deve incluir uma nova teoria da democracia que permita
reconstruir o conceito de cidadania, uma nova
teoria da subjectividade que permita reconstruir o conceito de sujeito e
uma nova teoria da emancipação que
não mais que o efeito teórico das duas primeiras teorias na transformação da
prática social levada a cabo pelo campo
social da emancipação” (p. 270).
Para uma nova teoria da democracia
Segundo o
Autor, o capitalismo não é suficientemente democrático. Quando o princípio do
Estado e o princípio do mercado se encontram na democracia representativa,
muito embora esta concedida pelas classes dominantes, ela se apresenta como
conquista das classes proletárias.
“A democracia representativa é, pois, uma
positividade e como tal deve ser apropriada pelo campo social da emancipação”
(p. 270).
“A
complementação ou o aprofundamento da democracia representativa através de
outras formas mais complexas de democracia pode conduzir à elasticização e
aumento do máximo de consciência possível, caso em que o capitalismo encontrará
um modo de convivência com a nova configuração democrática, ou pode conduzir,
perante rigidificação desse máximo, a uma ruptura ou, melhor, a uma sucessão
histórica de micro-rupturas que apontem para uma ordem social pós-capitalista.
[...] É esta indeterminação que faz o futuro ser futuro” (p. 270).
A renovação
da teoria democrática, afirma o Autor, implica numa articulação entre
democracia representativa e democracia participativa e, para que se realize tal
articulação, necessária se faz radical ampliação e redefinição do campo
político.
“A nova
teoria democrática deverá proceder à repolitização global da prática social e o
campo político imenso que daí resultará permitirá desocultar formas novas de
opressão e de dominação, ao mesmo tempo que criará novas oportunidades para o
exercício de novas formas de democracia e de cidadania.” (p. 271).
O Autor
distingue quatro espaços políticos estruturais. São eles: o espaço da cidadania
(o espaço político segundo a teoria liberal), o espaço doméstico, o espaço da
produção e o espaço mundial, dos quais todos configuram relações de poder, onde
cada um deles é um espaço político específico adequado a transformar as
relações de poder, de tal espaço, em relações de autoridade partilhada.
“O espaço doméstico continua a ser o espaço
privilegiado de produção social e a forma de poder que nele domina é o
patriarcado. [...] Obviamente, a discriminação sexual não se limita ao espaço
doméstico nem é sempre resultado do exercício do poder patriarcal; mas este
como que estabelece a matriz a partir da qual outras formas de poder são
socialmente legitimadas para produzir discriminação sexual” (p. 271).
“Apesar de
debatível é, no entanto, altamente improvável que o máximo de consciência
possível do capitalismo possa vir a integrar o fim da discriminação sexual. Em
qualquer caso, a politização do espaço doméstico – e, portanto, o movimento
feminista – é um componente fundamental da nova teoria da democracia.” (p.
272).
“O espaço da produção é o espaço das
relações sociais de produção e a forma de poder que lhe é própria é a
exploração (extracção de mais valia)” (p. 272).
O Autor
argumenta no sentido de que o isolamento político do operariado e a difusão
social da produção, somados ao desvio de atenção analítica dos cientistas
sociais, contribuíram para tornar menos importante o quotidiano do trabalho
assalariado.
“Por esta
razão, o espaço da produção perdeu protagonismo social e cultural e os sujeitos
sociais nele constituídos, sobretudo o operariado, peso político [...] A
articulação entre o isolamento político do operariado e a difusão social da
força de trabalho assalariada é responsável pela situação paradoxal de a força
de trabalho assalariada ser cada vez mais crucial para explicar a sociedade
contemporânea e o operariado ser cada vez menos importante e menos capaz de
organizar a transformação não-capitalista desta” (p.272).
Segundo o
Autor, o movimento operário obteve conquistas importantes, no entanto, foram
obtidas as expensas da total separação entre o espaço da cidadania e o espaço
da cidadania e o espaço da produção.
“A negociação
sindical e a representação política do movimento operário, que foram tão
importantes para melhorar as condições de vida dos trabalhadores, foram também,
decisivas para naturalizar, trivializar e, em suma, despolitizar as relações de
produção” (p. 273).
“Nestas
condições uma das tarefas centrais da nova teoria democrática consiste na
politização do espaço da produção” (p. 273).
O Autor
defende que a fábrica é um micro-Estado onde se detectam instituições
isomórficas do campo político liberal, e, recentemente tem evoluído na direção
de descaracterizar e heterogeneizar cada vez mais as relações de produção.
“Esta
heterogeneidade das relações sociais de produção, que, obviamente, sempre
existiu mas é hoje mais descaracterizadora do que nunca, torna a relação social
entre capital e trabalho menos específica e a relação entre lucros e salários
menos definida. A mais-valia econômica é cada vez mais tão-só um dos componentes
de uma relação de poder onde se misturam, para além dela, mais-valias étnicas,
sexuais, culturais e políticas” (p. 273).
O Autor
complementa, que embora crescente a ineficácia e desatualização do movimento
operariado, esta situação oportuniza cidadanizar o espaço da produção. A
politização do espaço da produção é multidimensional e envolve primeiramente a
relação capital-trabalho e, em segundo plano, a politização do espaço da
produção envolve as relações na
produção.
“O que
distingue as mais-valias étnicas, sexuais, culturais e políticas é que elas, ao
contrário da mais-valia económica, podem existir nas relações entre
trabalhadores [...] As relações de poder entre trabalhadores na produção podem
violentar o quotidiano do trabalho assalariado tanto ou mais que a relação
entre capital e trabalho. A ocultação desta forma de poder em nome de míticas
solidariedades constitui um acto de despolitização e de desarme político”
(p.274).
A politização
do espaço da produção envolve, em terceiro lugar, os processos de trabalho e de
produção e a das chamadas matérias-primas.
“A
politização da tecnologia não é possível sem a das chamadas matérias-primas, ou
seja, sem a politização da relação natureza-sociedade no espaço da produção
[...] A politização da natureza envolve a extensão a esta do conceito de
cidadania, o que significa uma transformação radical da ética política da
responsabilidade liberal, assente na reciprocidade entre direitos e deveres”
(p. 274 e 275).
“O espaço mundial é o conjunto dos impactos
em cada formação social concreta decorrentes da posição que ela ocupa no
sistema mundial [...] As relações de troca de desigual entre países centrais,
periféricos e semiperiféricos sempre tiveram uma forte dimensão política, como
os atestam as guerras, o direito internacional público e as organizações
políticas internacionais” (p. 275).
“As empresas
multinacionais são os grandes veículos da cultura-ideologia do consumismo e têm
desempenhado um papel crucial em aumentar expectativas consumistas que não
podem ser satisfeitas, num futuro previsível, pela massa da população do
chamado Terceiro Mundo” (p. 275 e 276).
Conforme o
Autor, a politização das praticas transnacionais é ponto crucial para a
transformações das mencionadas relações de poder em relações de autoridade
partilhada.
“A nova
teoria da democracia – que também poderíamos designar por teoria democrática
liberal – tem, pois, por objectivo alargar e aprofundar o campo político em
todos os espaços estruturais da interação social [...] E as transformações
prolongam-se no conceito de cidadania, no sentido de eliminar os novos
mecanismos de exclusão da cidadania, de combinar formas individuais com formas
colectivas de cidadania e, finalmente, no sentido de ampliar esse conceito para
além do princípio da reciprocidade e simetria entre direitos e deveres” (p.
276).
Para uma nova teoria da emancipação
“A nova
teoria da emancipação parte da ideia de que – do ponto de vista do político,
alargado e aprofundado pela nova teoria democrática – os anos sessenta apenas
começaram e continuarão a ser uma referência central nos anos noventa [...] os
movimentos sociais dos anos sessenta tentaram pela primeira vez combater os
excessos de regulação da modernidade através de uma nova equação entre
subjetividade, cidadania e emancipação” (p. 276).
“Uma tal
concepção da emancipação implica a criação de um novo senso comum político [...] A nova cidadania tanto se constitui
na obrigação política vertical entre os cidadãos e o Estado, como na obrigação
política horizontal entre cidadãos [...] Com isto, revaloriza-se o princípio da
comunidade e, com ele, a ideia de autonomia e a ideia de solidariedade [...]
sem dispensar o Estado das prestações sociais a que o obriga a reivindicação da
cidadania social, sabe abrir caminhos próprios de emancipação e não se resigna
à tarefa de colmatar as lacunas do Estado e, deste modo, participar, de forma
benévola, na ocultação da opressão e do excesso de regulação” (p. 278).
Capítulo 10
O Norte o Sul
e a Utopia (p. 281)
“Em 1841,
Charles Fourier, o grande pensador da utopia, invectivava os cientistas sociais
– que ele designava como ‘os filósofos das ciências incertas’ – por
sistematicamente se esquecerem dos problemas fundamentais das ciências que
ocupam.” (p. 281)
“Será que as
ciências sociais estão hoje mais bem equiparadas para não esquecerem dos
problemas fundamentais ou, pelo contrário continuam a esquecê-los
sistematicamente? Será que são hoje menos ou mais incertas que o eram há cento
e cinquenta anos?” (p. 281-282)
“O que são
problemas fundamentais? Como se pode ver pelo exemplos dados por Fourier, são
problemas que estão na raiz de nossa instituições e das nossas práticas, modos
profundamente arreigados de estruturação e de ações sociais considerados por
alguns como fontes de contradições, antinomias, incoerências, injustiças que se
repercutem com intensidade variável nos mais diversos sectores da vida social”
(p. 282-283)
“É notório
que a ciência moderna em geral e as ciências sociais em particular atravessam
hoje uma profunda crise de confiança epistemológica.” (p. 283)
“Desta
convergência entre dinâmicas epistemológicas e societais resulta não só a maior
visibilidade dos problemas fundamentais, como maior urgência no encontrar
soluções para eles. É por esta razão que alguns, entre os quais me incluo,
entendem que estamos a entrar num período de transição paradigmática,
tanto no plano epistemológico – como no
plano societal – da sociedade capitalista para outra forma societal que pode
ser melhor como pior.” (p. 283)
“[...]me proponho
a analisar de seguida alguns dos vectores dos problemas que, na minha opinião,
são já hoje fundamentais e sê-lo-ão, e muito mais, nas próximas décadas para,
na última parte, traçar o mapa do terreno onde podem ser queridas e buscadas
algumas alternativas emancipatórias em nada envergonhadas ou ofendidas por
serem ditas utópicas.” (p. 284)
Os problemas
fundamentais nos diferentes espaços-tempo (p. 284)
O espaço-tempo mundial (p. 284)
“O problema
fundamental do espaço-tempo mundial é a crescente e presumivelmente
irreversível polarização entre o Norte e o Sul, entre países centrais e países
periféricos no sistema mundial. Este problema comporta uma grande pluralidade
de vectores. Salientarei apenas três deles: a explosão demográfica, a globalização
da economia e a degradação ambiental.” (p. 286)
A explosão demográfica (p. 286)
“Em primeiro
lugar, o vector da explosão demográfica.
Entre 1825 e 1925 a população mundial duplicou de 1 bilião de pessoas para dois
biliões. Nos cinquenta anos seguintes voltou a duplicar para 4 biliões e entre
1975 e 1990 passou de 4 biliões para 5,3 biliões de pessoas. A projecção para
as próximas décadas variam, mas, a fazer jus a uma projecção moderada, em 2025
a população mundial será de 8,5 biliões de pessoas” (p. 286-287)
“A explosão
demográfica torna-se um problema quando produz um desequilíbrio entre a
população e os recursos naturais e sociais para sustentar adequadamente, e é um
problema tanto mais sério quanto mais grave for esse desequilíbrio.” (p. 287)
A globalização da economia (p. 289)
“Isto me
conduz ao segundo vector da desigualdade Norte/Sul no espaço-tempo muldial: a globalização da economia. Mesmo
admitindo que existe uma economia-mundo desde o século XVI, é inegável que os
processos de globalização se intensificaram enormemente nas últimas décadas.”
(p. 289)
“Dos traços
desta evolução sobretudo nas últimas duas décadas selecciono os mais
importantes para a minha tese. O primeiro traço é a deslocação da produção mundial para a Ásia consolidando-se esta como
uma das grandes regiões do sistema mundial, constutuída, como todas as
outras regiões, por um centro (o Japão), uma semiperiferia (os novos países
industriais: a Coréia do Sul, Taiwan, Hong Kinge Singapura) e uma periferia (o
resto da Ásia).” (p. 289)
“O segundo
traço da globalização da economia é a primazia
total das empresas multinacionais, enquanto agentes do ‘mercado global’.”
(p. 290)
“Concomitante
com a primazia das multinacionais, dois outros traços de globalização da
economia devem ser mencionados pela importância que têm para a polarização da
desigualdade entre o Norte e o Sul. O primeiro é a erosão da eficácia do Estado na gestão macro-económica.” (p.290)
“O outro
traço da globalização da economia fortemente vinculado à proeminência das
multinacionais e o avanço tecnológico das
últimas décadas quer na agricultura com a biotecnologia, quer na indústria com
a robótica, a automação e também a biotecnologia.” (p. 291)
“Em 1988, s
280.000 robots industriais existentes no mundo, 257.000 estavam concentrados no
Japão, na Europa ocidental e nos EUA. Mas o mais notável é que, desses, o Japão
detinha 176.000, ou seja, mais do dobro da soma dos robots da Europa e dos EUA,
cerca de 70% da população mundial de robots industriais (Kennedy, 1993: 88).”
(p. 291)
[...] o
aspecto mais saliente da biotecnologia agrícola do ponto de vista das relações
Norte/Sul é que ela certamente agravará tanto a sobreprodução do Norte como a
subprodução do Sul.” (p. 292)
“Perante isto
não admira que o cisma global entre os ricos e os pobres se tenha aprofundado.
Calcula-se que 1 bilião de pessoas – mais de 14 da população mundial – viva em
pobreza absoluta, ou seja, dispondo de um rendimento inferior a cerca de 365
dólares por ano. Do outro lado do abismo, 15% da população mundial produziu e
consumiu 70% do rendimento mundial.” (p. 293)
“Para além
dos poucos países do Sul que nesta década conseguiram beneficiar das
tranformações da economia mundial, a esmagadora maioria perdeu, e uma parte
dela atingiu uma situação de colapso de que se manifesta de múltiplas formas”
(p. 293)
“Como já
aconteceu no passado noutras circunstâncias, não é absurdo pensar que os
agricultores do Terceiro Mundo venham a fornecer às empresas de biotecnologia
recursos genéticos a partir dos quais estas produzam bio-produtos a que os
agricultores do Terceiro Mundo só terão acesso se tiverem recursos para pagar
os elevados preços que elas cobrarão por eles.” (p. 295)
A degradação ambiental (p. 296)
“De todos os
problemas enfrentados pelo sistema mundial, a degradação ambiental é talvez o mais intrinsecamente transnacional,
e, portanto, aquele que, consoante o modo como for enfrentado, tanto pode
redundar num conflito global entre o Norte e o Sul, como pode ser a plataforma
para um execício de solidariedade transnacional e intergeracional.” (p. 296)
“[...] o
Norte não parece disposto a abandonar os seus hábitos poluidores e muito menos
a contribuir, na medida de seus recursos e responsabilidades, para uma mudança
dos hábitos poluidores do Sul, que são mais uma questão de necessidade que uma
questão de opção.” (p. 296)
“Os países do
Norte ‘especializaram-se’ na poluição industrial e em tempos mais recentes têm
conseguido exportar parte dessa poluição para os países do Sul, quer sob a
forma de venda de lixo tóxico, quer por transferência de algumas das indústrias
mais poluentes por ser aí menos a consciência ecológica e serem menos
eficazes (se de todo existentes) os
controles antipoluição.” (p. 297)
“[...] a
gravidade do problema ambiental reside antes de mais no modo como afectará as
próximas gerações.” (p. 298)
“[...] os
problemas mais sérios com que se confronta o sistema mundial são globais e como
tal exigem soluções globais” (p. 299)
O espaço-tempo doméstico (p. 301)
“O espaço-tempo
doméstico é o espaço-tempo das relações familiares, nomeadamente entre cônjuges
e entre pais e filhos. As relações sociais familiares estão dominadas por uma
forma de poder, o patriarcado, que está na origem da discriminação sexual de
que são vítimas as mulheres.” (p. 301)
“Um pouco por
toda a parte a mulher tem a seu cargo, para além da reprodução biológica, a
preparação dos alimentos, as compras para o consumo doméstico e o trabalho de
organização e de execução que permite a reprodução funcional da unidade
familiar.” (p. 302)
“A
articulação das relações sociais do espaço-tempo doméstico com o espaço-tempo
mundial é complexa.” (p. 302)
“Por exemplo,
as estatísticas das Nações Unidas mostram que, salvo algumas excepções, a taxa
de fertilidade está intimamente relacionada com o nível educacional das
mulheres, baixando à medida que este aumenta. Assim, segundo o World Resources
Institute, a das mulheres analfabetas em Portugal é de 3,5 enquanto a das
mulheres com sete ou mais anos de escolaridade é de 1.8 (World Resources, 1990:226).” (p. 302)
“[...]
crescente emprego da mulher no sector industrial com os efeitos do investimento
multinacional no trabalho das melheres, com a forte participação do trabalho
feminino no sector desregulamentado ou informal da economia e, finalmente, com
a intensificação do trabalho doméstico” (p. 303)
“Mais
importante ainda é o fato de as mulheres serem sistematicamente vítimas de
discriminação salarial, sendo-lhes na prática negada a fruição do princípio do
salário igual para trabalho igual consagrado na legislação da maior parte dos
países.” (p. 304)
“Hoje em dia
as novas tecnologias da informação, da comunicação, da automação estão a actuar
no sentido de superar esta distinção e fazer de novo convergir na família as
funções de produção e de reprodução.” (p. 305)
“No Norte,
trata-se sobretudo de trabalhadores altamente qualificados que, munidos do seu
computador pessoal integrado em múltiplas redes, fazem em casa e com relativa
autonomia o trabalho que antes os fazia deslocar-se a empresa, perder horas nos
congestionamentos de transito e trabalhar segundo horários mecânicos e
estandardizados. No Sul o trabalho em casa é quase sempre feito por mulheres e
crianças; é o trabalho realizado à peça em geral nas indústrias trabalho-intensivas do sector têxtil e do calçado.” (p. 305)
O espaço-tempo da produção (p. 306)
“O
espaço-tempo da produção é o espaço-tempo das relações sociais através das
quais se produzem bens e serviços que satisfazem as necessidades como tal elas
se manifestam no mercado enquanto procura efectiva. Caracteriza-se por uma
dupla desigualdade de poder: entre capitalistas e trabalhadores, por um lado, e
entre ambos e a natureza, por outro.” (p. 306)
“A
importância do espaço-tempo da produção reside em que nele se gera a divisão de
classes que juntamente com a divisão sexual e a divisão étnica constitui um dos
grande factores de desigualdade social e de conflito social.” (p. 306)
“Sem dúvidas
que a globalização da economia representou maior prosperidade para alguns
países, mas só manteve intactas, se não mesmo agravou, as assimetrias globais
no sistema mundial, como agravou claramente as desigualdades sociais, tanto nos
países do centro, como nos países do Sul” (p. 308)
“[...] a
centralidade do trabalho e da produção, ao invés de diminuir, tem de facto
aumentado. E a razão para isto reside na crescente mercadorização da satisfação
das necessidades e na cultura que lhe está associada e a legítima – o
consumismo.” (p. 309)
“[...] o
operariado deixou de ser uma força privilegiada de transformação social.” (p.
310)
“[...] o que
é preciso compreender ou explicar por que é que esta centralidade nas práticas
sociais dominantes não se traduz em capacidade colectiva para transformar. Este
é, pra mim, um dos problemas fundamentais com que se confronta o espaço-tempo
da produção.” (p. 310)
“[...] quanto
mais fácil é ao capital organizar transnacionalmente o trabalho a seu favor,
mais difícil é ao trabalho organizar-se transnacionalmente contra o capital” (p.
311)
“O
espaço-tempo da produção compreende ainda, como uma dimensão relativamente
autônoma, o núcleo das relações sociais de troca mercantil. Abrange, portanto,
as relações de consumo.” (p. 311)
“[...] a
satisfação das necessidades por via do mercado se transforma em uma dependência
em relação a necessidades que só existem como antecipação do consumo mercantil
e que, como tal, são a um tempo plenamente satisfeitas por este e infinitamente
recriadas por ele” (p. 312)
“O aumento da
pobreza e da permanência de formas de substistência tradicional revelam que uma
larga maioria da população mundial tem ainda muito pouco contacto com o consumo
mercadorizado e que, portanto, a maior parte da produção multinacional nos
países periféricos não se destina obviamente ao mercado interno.” (p. 312)
“[...] de
todas as disparidades entre o Norte e o Sul, as disparidades no consumo são,
sem dúvidas, as mais evidentes” (p. 313)
O espaço-tempo da cidadania
“Mas se no
plano interno o Estado está a ser cada vez mais confrontado com forças
subestatais, no plano internacional confronta-se com as forças supra-estatais
que já acima assinalei ao falar nas transformações do espaço-tempo mundial. A
erosão da soberania de que tanto hoje se fala não é de facto um fenômeno novo.
Ao contrário, tem caracterizado desde sempre a experiência dos Estados
periféricos e semiperiféricos nas suas interacções com Estados centrais. O que
é novo é o facto de essa erosão e de essa permeabilidade da soberania estar
hoje a ocorrer nos Estados centrais”. (p. 315)
“Este
processo de erosão da soberania, que faz desta menos um valor absoluto do que
um título negociável, apesar de ocorrer globalmente, não elimina, e, pelo
contrário, agrava as disparidades e as hierarquias no sistema mundial. Como referi
acima, este facto torna urgente uma nova ordem transnacional adaptada a novas
condições, a qual, no entanto, parece estar a ser bloqueada precisamente pelas
condições que a tornam urgente: a erosão da soberania do Estado e a perda da
centralidade do Estado em face de forças subestatais e supra-estatais”. (p.
315)
“O
racionalismo iluminista, em conexão com o capitalismo liberal e individualista,
por um lado, e o Estado moderno, democrático, por outro, paracem capazes de
destronar para sempre, tanto na Europa, como no mundo por ela colonizado, as
identidades ditas tradicionais, retrógradas, primitivas que sustentavam tais
relações, e o Estado foi o dispositivo, privilegiado para levar a cabo essa
tarefa. Enquanto Estado nacional, assente num privilégio de cidadania, criava
uma nova comunidade, a comunidade nacional, que substituiria a comunidade
étnica; enquanto Estado secular, assente num princípio de separação entre a
igreja e o Estado, criava uma cultura pública específica, o secularismo, que a
prazo tornaria a identidade religiosa obsoleta. A verdade é que nas últimas
décadas este projeto modernista foi posto drasticamente em causa, quando, para
surpresa de muitos, as identidades e as lealdades primordiais da etnia e da
religião ganharam nova força, ao mesmo tempo que o carácter nacional do Estado
e o secularismo entravam em crise”. (p. 316)
“A crise do
Estado e das ideologias desenvolvimentista abre neste domínio uma caixa de
pandora donde podem sair, lado a lado, e às vezes misturados, o racismo, o
chauvinismo étnico e mesmo o etnocídio, por um lado, e a criatividade cultural,
a autodeterminação, a tolerância pela diferença e a solidariedade, por outro. A
dificuldade dilemática neste domínio reside precisamente em que à partida é
difícil prever qual destes processos prevalecerá ou se quer se qualquer deles
pode em dadas circunstâncias transmutar-se no outro”. (p. 317)
“A partir da
Revolução Francesa, o Estado moderno assumiu gradualmente muitas das tarefas e
posiçõpes sociais que eram antes ocupadas pela Igreja, um processo que se
designou em geral por secularização e que, pelo seus papel crucial, passou a
ser considerado como um dos traços principais da modernidade”. (p. 317)
“Na periferia
do sistema mundial, o revivalismo fundamentalista, sobretudo do fundamentalismo
islâmico, deve ser visto em geral como uma resposta ao fracasso do nacionalismo
e do socialismo, e como uma alternativa que, ao contrário do que sucedeu com
estes dois últimos, não assenta na imitação do ocidente e na rendição do imperialismo
cultural deste, e antes se baseia na possibilidade de um projeto social,
político e cultural autônomo”. (p. 318)
“Tal como
sucede com as identidades e lealdades étnicas e, como vimos, muitas vezes
interpenetradas por elas, as identidades e lealdades religiosas constituem uma
caixa de Pandora de que podem jorrar tanto energia destrutivas, como energias
construtivas. O dilema reside em que a crítica radical que, sobretudo os países
periféricos dirigem às promessas da modernidade e do capitalismo eurocêntricos,
ocorre num momento de crise profunda do paradigma da modernidade e, portanto,
num momento em que se começa a reconhecer que essas promessas tão-pouco foram
cumpridas nos países centrais e tão-pouco podem vir a sê-lo dentro deste
paradigma”. (p. 319).
As dificuldades fundamentais
“Emergiram ou
agravaram-se nas duas últimas décadas uma série de problemas transnacionais,
alguns transnacionais por natureza e outros transnacionais pela natureza do seu
impacto. São os problemas da degradação ambiental, do aumento da população e do
agravamento das disparidades de bem-estar entre o centro e a periferia, tanto
ao nível do sistema mundial, como ao nível de cada um dos Estados que o
compõem”. (p. 319)
“No plano
interno, parece que essa crise se vai traduzir nos próximos anos no aumento das
convulsões sociais, no fundamentalismo religioso, na criminalidade, nos motins
motivados pelas iniqüidades do consumo, na guerra civil e, nalguns casos, na
perda de controle político sobre parte do território nacional. Essa crise do
sujeito, significa que o sistema mundial capitalista, ao mesmo tempo que
transnacionaliza os problemas, localiza as soluções e, efectivamente, dada a
crise do Estado, faz baixar o patamar de localização para o nível subnacional”.
(p. 320)
“Se, como
disse acima, há certos problemas em relação aos quais ninguém poderá a prazo
ganhar com a sua irresolução, parece ser impossível, nesses casos pelo menos,
determinar o inimigo contra o qual seja preciso organizar uma solução do
rpoblema. É certo que mencionei acima o papel das empresas multinacionais na
criação dos nossos problemas pelo simples fato de serem elas hoje os únicos
titulares de pensamento estratégico no sistema mundial. Mas é evidente que não
são o único inimigo identificável nem tão-pouco me parece que o inimigo possa
ser identificado apenas ou sobretudo ao nível institucional. Os nossos
problemas são mais fundos, e as instituições só podem resolvê-los depois de
transformadas e reinventadas ao nível a que os problemas ocorram”. (p. 321)
A utopia e os conflitos paradigmáticos
“O futuro já
não é o que era, diz um graffitto numa
rua de Buenos Aires. O futuro prometido pela modernidade não tem, de facto,
futuro. DescrÊ dele, vencida pelos desafios, a maioria dos povos da periferia
do sistema mundial, porque em nome dele negligenciaram ou recusaram outros
futuros, quiçá menos brilhantes e mais próximos do seu passado, mas que ao
menos asseguravam a subsistência comunitária e uma reação equilibrada com a
natureza, que agora se lhes deparam tão precárias”. (p. 322)
“ Penso,
pois, que, perante isto, só há uma saída: reinventar o futuro, abrir um novo
horizonte de possibilidades, cartografado por alternativas radicais que
deixaram de o ser”. (p. 322)
“Perante isto
como proceder? Penso que só há uma solução: a utopia. A utopia é a exploração
de novas possibilidades e vontades humanas, por via da oposição da imaginação à
necessidade do que existe, só porque existe, em nome de algo radicalmente
melhor que a humanidade tem direito de desejar e porque merece a pena lutar”.
(p. 323)
“Apesar de
algumas idéias utópicas serem eventualmente realizadas, não é da natureza da
utopia ser realizada. Pelo contrário, a utopia é a metáfora de uma
hipercarência formulada ao nível a que não pode ser satisfeita”. (p. 324)
“O que
proponho a seguir não é uma utopia. É tão-só uma heterotopia. Em vez da
invenção de um lugar totalmente outro, proponho uma deslocação radical dentro
de um mesmo lugar, o nosso”. (p. 325)
“Aliás
especula que as nossas peculiaridades não serão menores que as dos lunares e
conclui, com a distancia lúdica que nos recomenda, ‘estaremos reduzidos a dizer
que os deuses estavam bêbados quando fizeram os homens e que quando olharam a
sua obra, já sóbrios, não puderam deixar de rir’(1955: 90)”. (p. 325)
“Os
fragmentos pré-paradigmáticos são por enquanto um paradigma virtual e nem
sequer é seguro que à modernidade se seguirá um outro paradigma com a com a
mesma coerência global e pretensão totalizadora que ela teve”. (p. 327)
Conhecimento e subjectividade
“O novo
paradigma constitui uma alternativa a cada um destes traços. Em primeiro lugar,
nos seus termos não há uma única forma de conhecimento válido. Há muitas formas
de conhecimento, tantas quantas as práticas sociais que se geram e as sustentam.
A ciência moderna é sustentada por uma prática de divisão técnica profissional
e social do trabalho e pelo desenvolvimento tecnológico infinito das forças
produtivas de que o capitalismo é hoje único exemplar”. (p. 328)
“O que se
pretende é, pois, uma concorrência epistemológica leal entre conhecimentos com
o processo de reinventar as alternativas de prática social de que carecemos ou
que afinal apenas ignoramos ou não ousamos desejar”. (p. 329)
“Esse ponto
de chegada depende do processo argumentativo no interior das comunidades
interpretativas. O conhecimento do novo paradigma não é validável por
princípios demonstrativos de verdades intemporais. É, pelo contrário, um
conhecimento retórico cuja validade depende do poder de convicção dos
argumentos em que é traduzido”. (p. 329)
“Um dos
princípios reguladores da validação é, pois, a democraticidade interna da
comunidade-interpretativa. O outro princípio é um valor ético intercultural, o
valor da dignidade humana. O novo paradigma não distingue entre meios e fins,
entre cognição e edificação. O conhecimento, estando vinculado a uma prática e
a uma cultura, tem um conteúdo ético próprio”. (p. 330)
“O novo
paradigma entende que o racionalismo estreito, mecanicista, utilitarista e
instrumental da ciência moderna, combinado com a expansão da sociedade de
consumo, obnubilou, muito para além do que previra Schiller, a capacidade de
revolta e de surpresa, a vontade de transformação pessoal e coletiva e que, por
isso, a tarefa de reconstrução dessa capacidade e dessa vontade é, em finais do
século XX, muito mais urgente do que era em finais do século XVIII. De resto,
para além de Schiller, outros criadores culturais, cuja as ideias e utopias
foram ainda mais suprimidas ou marginalizadas que as de Schiller, podem ser
convocados para levar a cabo tal tarefa”. (p. 333)
“A
desconfiança das abstrações é fundamental no novo paradigma. Não que elas não
possam ser aceites, mas que só o sejam quando os contextos da sua realização
lhes fazem jus. Por exemplo, o conceito abstracto de direitos humanos começa
hoje, dois séculos depois da sua formulação, a fazer verdadeiros sentido na
medida em que por todo o sistema mundial grupos sociais estão a organizar lutas
de emancipação guiadas por ele”. (p. 334)
Padrões de transformação social
“A segunda
nota é que o conflito paradigmático não é apenas terçado a nível intelectual,
como tem acontecido, pelo menos até agora, com o conflito epistemológico; é,
além disso, e cada vez mais, um conflito social e político sustentado por grupos
e interesses organizados, ainda que com poder e organização muito desiguais”.
(p. 335-336)
“Na transição
paradigmática, o Estado será dito Estado-Providencia quando assegurar a
concorrência em igualdade de circunstâncias entre os paradigmas rivais”. (p.
337)
“Ao nível do
espaço-tempo da cidadania, a confrontação entre os paradigmas é particularmente
crucial e difícil de manter, uma vez que, sendo o Estado a forma institucional
deste espaço-tempo, tem de promover o conflito paradigmático no interior de si
mesmo e é por isso que a quarta dimensão providencial do Estado em Pasárgada 2
é autoprovidência do Estado para consigo mesmo. Neste espaço-tempo, conflito paradigmático ocorre entre o
paradigma da obrigação política vertical e o paradigma da obrigação política
horizontal”. (p. 338)
“O princípio
da soberania exclusiva, tal como foi desenvolvido pelo paradigma dominante,
torna na prática possível que os Estados mais fortes, invocando interesses
nacionais, nomeadamente de segurança nacional, possam exercer as suas
prerrogativas de soberania à custa da soberania dos Estados mais fracos”. (p.
340)
Poder e política
“A terceira
grande área de contradição e competição paradigmática é o poder e a política.
Esta área é talvez mais importante que as demais na medida em que nela se
concebem e forjam as coligações capazes de conduzir a transição paradigmática.
A dificuldade de tal tarefa está em que a transição paradigmática reclama,
muito mais que uma luta de classes, uma luta de civilizações, e reclama-o num
momento em que nem sequer a luta de classes parece estar na agenda política”.
(p. 341)
“Nisso
consiste o processo global de democratização. Este paradigma envolve uma enorme
expansão do conceito da democracia em varias direcções, uma delas está na já
explicitada no acabei de descrever. Como vimos, a democracia deve ser expandida
do espaço-tempo da cidadania – onde aliás vigora com fortes limitações, como
vimos – ao restantes espaços-tempo estruturais”. (p. 344)
“Daí que na
transição paradigmática se tolere a imperfectibilidade das palavras e dos
cálculos se ela se traduzir numa maior razoabilidade e equidade das acções e
das consequências”. (p.346)
Pôde-se
entender no fichamento da presente obra, toda a conflituosidade existente no
paradigma da transformação social dos povos no espaço-tempo. Sendo assim, deve
ser salientado que a transição paradigmática deverá tolerar a
imperfectibilidade dos meios utilizados para se chegar ao final proposto. Em
outras palavras, deverá haver mais paciência para que seja possível alcançar
tais objetivos.