DIÁRIO DE CLASSE
28 de junho de 2014, 08:00h
Ele influenciou toda uma
geração de gente aturdida à procura de um mestre. Este lugar de oráculo,
todavia, nunca foi por ele ocupado, embora muitos assim o quisessem. Ao não
aceitar guiar, apontar o caminho, foi criticado, negado histericamente, ainda
que mais tarde (quase) todos tenham se rendido à postura manifestamente ética
de Luis Alberto Warat: apostar na capacidade de enunciação do sujeito. Teria
sido mais fácil, especialmente para os que cultivam um “narcisismo pedante”,
próprio da academia, ter fundado uma “seita jurídica” qualquer, na sua
modalidade mais contemporânea, a saber, uma “seita jurídica da salvação”. Mas
não. Sabia Warat que não há salvação concedida, completude prometida, pois isto
é empulhação imaginária. E o lugar dos salvadores sempre é o do canalha.
Restou, sempre, a aposta. A aposta no sujeito, na sua autenticidade,
carnavalizando as certezas.
Foi
uma convivência intransitiva. Depois de um longo luto, enfim, começo a conseguir
falar e apresentar à nova geração sua obra. Uma dívida comigo mesmo. Luis
Alberto Warat se foi para ficar. Com ele era impossível não fazer o impensável.
Um camaleão de sentidos que apostava no sujeito e, nos últimos tempos, na
mediação. Trabalhei com Warat e Juan Carlos Vezzula, nos anos 2000. Desde então
acredito na mediação. Não em qualquer mediação, mas na mediação laica.
Talvez uma das chaves para entender a proposta de Warat sobre
mediação possa estar na leitura cruzada, ou seja, como metáfora, da literatura,
recurso utilizado por ele diversas vezes. Por isso a invocação de Cortazar e
seu fantástico livro História de Cronópios e Famas,
justamente para indicar duas posições diferentes, a saber, os famas como sujeitos matemáticos,
estatísticos, ordenados, loucos por protocolos de atuação. Já os cronópios,
por seu turno, gente que aceita o convite da vida, do inesperado e de bom grado
a surpresa da faticidade, sem querer impor um padrão de vida. A opção entre famas e cronópios, no caso da
mediação, dá a dimensão do que se passa. Embora o discurso seja de aceitar o
outro e a violência que ele sempre traz consigo, muitas e muitas vezes o
deslizar para “consertar” o sujeito, a relação estabelecida entre os envolvidos,
faz com que os famas-mediadores neguem o fundamento da mediação, alienadamente.
Assim, parece, com acerto, que somente uma postura de mediador-cronópio pode
promover uma mediação sem salvação transcendente, já que vivem o mundo
poeticamente.
É que não se pode fazer uma leitura linear do conflito, nem o
entender como uma imagem. Ele é sempre a narrativa parcial de uma realidade
sustentada por um sujeito que enuncia e que precisa de uma fusão de horizontes
(Gadamer) num espaço compartilhado, desprovido, ademais, de verdade
verdadeira/fundante. A realidade entendida como limite simbólico,
portanto, da ordem do singular, impede que a leitura da realidade única possa
se estabelecer, como de regra acontece no plano do Direito. Há um para-além do
dito, no qual o sentido de uma possibilidade de interlocução e
responsabilização, por básico, demandam um procedimento específico para
produção de verdades, sem transcendência. Uma mediação laica, assim, parece ser
o desafio neste início de milênio. Essa possibilidade não implica na renúncia
aos mitos fundadores de qualquer sistema, mas justamente em reconhecer que a
transcendência opera no real, ou seja, em algo que somente se pode tocar pelas
bordas, enfim, no qual a palavra irá fundar, por definição, mas que não se pode
querer salvar ninguém.
Mais
cedo ou mais tarde se percebe que o conflito e sua manutenção ocupam o lugar de
um remédio imaginário contra o desalento constitutivo do sujeito, no medo que o
desamparo de uma solidão aumente pelo rompimento do vínculo que um processo
judicial proporciona, situação mais do que apurada no campo do Direito de
Família, em que as separações, divórcios, etc. nunca terminam, justamente
porque os sujeitos não podem dar cabo ao que lhes sustenta.... e a resposta
estatal padrão, fundamentada na razão, é manca. Sempre. Há um para além do
autos, no silêncio, no semi-dito, que condiciona o sentido do que virá
depois...
No
campo da mediação se constrói um conto com os materiais significantes
disponíveis, sem que já se antecipe o final. Difere de uma decisão judicial que
acredita ingenuamente dar a razão para alguma das partes (José Bolzan de Morais
e Fabiana Spengler). Rompe-se com o padrão moderno de racionalidade, enfim,
muda-se de rumo, como apontam João Salm e Rafael Mendonça. Aceita-se a
parcialidade de um acontecer. Não há um projeto do que pode ser adequado para
os envolvidos. Na singularidade que surgirão, por certo, a procela de
significantes que serão dispostos, em algo próximo a uma “bricolage”, em que a
garantia decorre da montagem conjunta dos concernidos.
Com efeito, o que se dá, de regra, são atores sociais que amam o
Direito, a mediação, mas odeiam gente, contato, proximidade, como fala Luis
Alberto Warat (O Ofício do
Mediador). Amam as pessoas à distância, nos seus lugares, desde que
os deixem em paz. A paz muitas vezes do discurso consciente contracena com o
desprezo, a intolerância em relação ao outro. O encontro é similar a lógica do
“amor cortês”, no sentido de evitar o encontro com a “coisa”, enfim, como no
“amor cortês” é um falso amor, aqui, no caso da mediação por protocolos, é um
falso respeito. Por detrás do discurso esconde-se, não raro, uma intolerância
primordial. Evitar-se o encontro ao máximo, com medo do trauma que daí advém,
sempre. E quando acontece o encontro, por exemplo, com a violência, o conflito,
a intolerância impera soberana. Por isso que Lacan (Ética da Psicanálise), ao afirmar que o real existe, mas é impossível, refere-se ao
axioma: “ama o teu próximo”, porque ele para ser amado deve permanecer a certa
distância, sem encontro, porque quando isto se dá, o trauma acontece. É sobre
este trauma que muitas vezes a Mediação é chamada a se manifestar. A sociedade
vive numa convivência à distância, um contato sem contato, e os contatos são
traumáticos por definição.
Daí
o perigo dos discursos de “Paz por Paz”, alienados da dimensão humana, na
esperança metafísica — e muitas vezes religiosa — de uma perenidade de humanos
tornados em anjos, imaginariamente. Esse é um projeto inalcançável e que
fomenta — muito de boa-fé — as atividades sociais totalitárias. Procura-se,
neste pensar, uma dessubjetivação, com o apagamento da dimensão de negatividade
do sujeito, de sua pulsão de morte (Freud). E os Famas de sempre procuram impor
um padrão de subserviência alienada ao desejo, tornando os mediados em
marionetes de um discurso opressivo e sem sentido. Procura-se, enfim, eliminar
o sujeito humano que molesta.
Aceitar o sujeito é admitir que age sem o saber, movido por uma
estrutura subjetiva singular, própria, embalada pelo princípio
de morte, na eterna tentação de existir. Pode ser que ali, no
conflito, uma tentativa de o sujeito se fazer ver, aparecer. A abordagem
tradicional busca calar esta voz, não deixar o sujeito dizer de si, de suas
motivações, previamente etiquetadas e formatadas. Há um sujeito no conflito. E
a mediação possibilita que ele se faça ver, dando-lhe a palavra, sempre. É com
a palavra, com a voz, que o sujeito pode aparecer. A violência em nome da lei,
imposta, simplesmente, realimenta uma estrutura de irresignação que (re)volta,
mais e mais.
Na mediação se pretende mostrar que não se pode gozar tudo, pois
há um impossível a se gozar em sociedade. Busca-se, ao inverso do discurso
padrão, construir laço social, e não a imposição de um respeito incondicionalkantiano que, por básico, opera na lógica: não
discuta, cumpra. Buscar que o sujeito enuncie seu discurso e não despeje
enunciados, como diz Lebrun, ocupando um lugar e uma função. A aposta que se
faz, neste contexto, pois, é a de que reconhecer o outro, a alteridade, na
medida em que se descobre sujeito. Dito de outra forma, aceitar o outro sob a
forma de uma relação conflituosa, para somente assim ocorre laço social. Do
contrário, há intolerância. Sempre. Zizek (Arriesgar lo imposible:
Conversaciones com Glyn Daly) afirma que é preciso de alguma maneira aceitar a
violência, porque a tolerância à distância, própria do modelo liberal, é muito
mais cínica. Enfim, arriscar o impossível: aceitar e se relacionar com o outro
singular, no que a mediação, via cronópios, pode ser um sendero.
No
caso de Warat, eu tinha para com ele o que Cortazar chamava de “amizade
felina”, no sentido de que ele sabia quem eu era e eu sabia quem era Warat. Não
há mais o que falar. Fomos amigos e tchau, cada um para o seu lado. Como hoje e
a cada dia que a falta se instaura. De qualquer forma, com a sedução que ele
opera, vale a descrição de Pedro Juan Gutiérrez, o qual, por certo, descreve
Warat:
“Sou
um sedutor. Eu sei. Assim como existem os alcoólicos irrecuperáveis, os jogadores,
os viciados em cafeína, em nicotina, em maconha, os cleptomaníacos etcétera,
sou um viciado em sedução. Às vezes o anjinho que tenho dentro de mim tenta me
controlar e diz assim: ‘Não seja tão filho-da-p..., Luisito... Não percebe que
está fazendo estas mulheres sofrerem?’. Mas aí aparece o diabinho e o
contradiz: ‘Vá em frente. Elas ficam felizes assim, nem que seja só por um
tempo. E você também fica feliz. Não se sinta culpado. É um vício. Sei que a
sedução é um vício igual a outro qualquer. E não existe nenhum Sedutores
Anônimos. Se existisse, talvez pudessem fazer algo por mim. Se bem que não
tenho tanta certeza. Seguramente eu inventaria pretextos para não comparecer a
suas sessões e ter de ficar lá na caradura na frente de todo o mundo, botar a mão
na Bíblia e dizer serenamente: ‘Meu nome é Luis Alberto Warat. Sou um sedutor.
E faz hoje vinte e sete dias que não seduzo ninguém.”
Que
a Mediação seduza, famas e cronópios, mas que se adote uma postura poética do
mundo, sempre. O mundo ficou menos poético sem Warat.
PS: Vale registrar que são 100 semanas da coluna Diário de
Classe, na parceria de André Karam Trindade, Rafael Tomaz de Oliveira e Lenio
Luiz Streck. Obrigado aos leitores e à ConJur.
Texto originalmente disponível em: